Uma das principais medidas do Código Florestal, legislação que completou dez anos neste mês, está sendo usada de forma fraudulenta para destruir florestas, beneficiar grileiros e avançar sobre terras indígenas, segundo pesquisadores e ambientalistas.
Criado para regularizar áreas ambientais e com o objetivo de combater o desmatamento, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um registro público obrigatório para todos os imóveis rurais.
O cadastro, que funciona como uma espécie de “raio-x” da propriedade, é uma identificação ambiental de terras rurais e agrega informações sobre o perímetro do imóvel, traz dados sobre área de reserva legal e das terras de preservação permanente, além de identificar o proprietário.
O problema, porém, é que o preenchimento das informações se dá de forma autodeclaratória – ou seja, o proprietário insere os dados no sistema, gerido pelo governo federal – e a checagem dos dados repassados é praticamente nula.
Ao longo de dez anos, 6,5 milhões de imóveis rurais foram declarados no CAR. Desse total, pouco mais de 28 mil imóveis foram analisados, menos de 0,5% do total das inscrições.
Com isso, afirmam os ambientalistas, está havendo uma “proliferação” de CAR e abre-se espaço para que grileiros tomem as terras e usem o recibo de inscrição como uma forma de legitimar a invasão.
“Quase 44% dos CAR que a gente analisou são acima de 15 módulos fiscais, ou seja, têm 1,5 mil hectares. Isso não é propriedade de pequeno produtor. Realmente, grandes grileiros é que estão declarando grandes áreas de terra pública como privada”, disse ao g1 Paulo Moutinho, doutor em ecologia e pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
“A pessoa que declarou tem aquele documento na mão e vai dizendo: ‘Olha, essa terra é minha, eu declarei no sistema’. E é tudo fraude” afirmou Moutinho.
Em nota, o Ministério da Agricultura respondeu que já foram identificadas “sobreposições que devem ser sanadas” durante a etapa de análise dos cadastros, mas que essa é uma competência dos estados (leia mais abaixo).
Os dados sobre as irregularidades no CAR foram apresentados por Moutinho à Comissão de Meio Ambiente do Senado na última quarta-feira (25).
Também participaram da audiência o vice-presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), João Paulo Capobianco; a ex-conselheira do Conselho Nacional de Justiça, Maria Tereza Uille Gomes; o perito criminal da Polícia Federal Herbert Dittmar; o coordenador de Repressão a Crimes Ambientais de Patrimônio Cultural da Polícia Federal, Nilson Vieira dos Santos, e a diretora de Regularização Ambiental do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), Jaine Davet.
Após a audiência, senadores passaram a avaliar a criação de um grupo de trabalho para discutir formas de conter o problema.
Do desmatamento ao pasto
Além do o uso do CAR para a invasão de terras públicas, pesquisadores identificaram o aumento do desmatamento em áreas com cadastros irregulares e localizados em florestas públicas não destinadas – terras do governo federal e dos estados que aguardam uma destinação para a conservação e o uso sustentável dos recursos e que não podem ser utilizadas para outros fins.
Essas florestas – públicas – estão sendo declaradas como propriedade privada no CAR. Já há, de acordo com Paulo Moutinho, mais de 110 mil cadastros feitos sobre essas áreas.
De um total de 56,5 milhões de hectares de florestas públicas não destinadas no país, mais de 30% (18,6 milhões de hectares) estão registrados no CAR, o que é ilegal. Além disso, até 2020 o desmatamento ilegal nessas florestas públicas somava 3,2 milhões de hectares e em 66% deles havia o registro no cadastro ambiental.
“Nos últimos três anos, aumentou em 50% o desmatamento só nessa categoria de floresta pública não destinada em relação aos anos anteriores. Ou seja, a grilagem perdeu o controle, e isso é por uma conivência do governo, não tenho a mínima dúvida disso. Não só o governo federal, mas alguns governos estaduais também, que acham que a floresta é impedimento a progresso e crescimento econômico”, disse o pesquisador do Ipam, com base em dados do Deter, o sistema de alertas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Os estudos mostram ainda o destino das florestas públicas após o desmatamento: a pastagem. Entre 2016 e 2020, 78% das terras foram usadas para o pasto, o que, para os estudiosos, representa um ilegal “mercado da carne”.
Terras indígenas
Os imóveis rurais também estão sendo sobrepostos em terras indígenas, de acordo com o vice-presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), João Paulo Capobianco.
Segundo ele, atualmente há 297 terras indígenas nas quais há uma parte ou até a totalidade da área com registro no CAR. A quantidade corresponde a 40% de todas as terras indígenas no país.
No Senado, Capobianco apresentou exemplos de cadastros ativos (em situação de regularidade) sobre as terras indígenas. Quando o CAR está regularizado, o produtor tem direito a diversos benefícios, como obtenção de créditos agrícolas e tributários e isenção de impostos sobre determinados insumos.
Entre os locais com cadastros rurais ativos estão o Parque Indígena do Xingu e a terra indígena Capoto-Jarina, no Mato Grosso. Há registros ainda no Amazonas, no Pará, em Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e Paraná. De acordo com a Constituição, as terras indígenas são bens da União.
“O CAR é uma boa ferramenta, ela é necessária, ela é positiva. Agora, a má gestão do CAR pelo Serviço Florestal Brasileiro está gerando esse problema dramático, acolhendo grilagem de terra e promovendo uma especulação imobiliária terrível sobre terras públicas destinadas e não destinadas”, disse Capobianco.
O que diz o governo
Em nota enviada ao G1, o Ministério da Agricultura (Mapa) informou que compete às unidades federativas (estados e Distrito Federal) a análise do Cadastro Ambiental Rural e que cabe ao Serviço Florestal Brasileiro (SFB), como órgão coordenador da política nacionalmente, dar suporte e buscar meios para dar celeridade a este processo.
A pasta informou ainda que o Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) passou a ser responsabilidade do Mapa em 2019.
“Por se tratar de uma base georreferenciada e com inscrição simplificada para imóvel até 4 módulos fiscais, já foram identificadas sobreposições que devem ser sanadas durante a etapa de análise, conforme orientação do órgão estadual responsável”, afirmou o ministério.
A pasta acrescentou que o Serviço Florestal Brasileiro desenvolveu uma ferramenta à disposição dos estados que permite o reconhecimento de regularidade ambiental por parte do órgão público e também possibilita aos estados identificar áreas sobrepostas.
Fonte: G1