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ENTREVISTA

'Estamos caindo de cabeça do penhasco com as mãos presas ao celular', diz naturalista sobre preservação ambiental

"As crises climáticas começam a bater na porta de muitos lugares e as pessoas ficam surpresas, como os incêndios na Austrália e na Califórnia, mas elas foram avisadas", diz o naturalista Hiriart

11 de setembro de 2022
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Andrés Cota Hiriart na Cidade do México: ‘O alarmismo não serviu. No meu livro eu tento humor para abordar temas muito ásperos’ — Foto: Arquivo pessoal

De escorpiões a camaleões, cobras e até um crocodilo.

Esses animais, e muitos outros, povoaram o “museu vivo” em que Andrés Cota Hiriart cresceu.

O zoólogo e naturalista mexicano conta em seu livro “Fieras familiares” (“Feras familiares”, na tradução em português) suas divertidas aventuras com os animais que marcaram sua vida, tanto na infância quanto em suas viagens de exploração pelo mundo.

O escritor conta como acabou mordido pela própria serpente píton, recebeu escorpiões de presente no Dia dos Namorados, foi perseguido por um macho alfa de leão-marinho nas Ilhas Galápagos e surpreendentemente sobreviveu ao ataque de uma anaconda.

O livro também é uma reflexão profunda sobre a atual crise de extinção em massa e um chamado à ação para todos nós “macacos falantes amantes de plástico”.

Cota Hiriart conversou com a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, no âmbito do Hay Festival Querétaro, que acontece na cidade mexicana de mesmo nome de 1° a 4 de setembro.

BBC – Como nasceu dentro de você a paixão pelos animais, principalmente pelos répteis?

Andrés Cota Hiriart – Muitas pessoas que têm esse tipo de paixão pela natureza, especificamente pelas serpentes, já nascem assim.

Gosto muito delas desde que me lembro. Encontrei uma certa experiência estética na natureza em geral e nos répteis e anfíbios em particular.

Minha mãe e meu pai, que são fisiologistas médicos, não necessariamente encorajaram meu comportamento, mas não me censuraram. Muitos meninos ou meninas podem ter essa ligação censurada.

BBC – É maravilhoso como sua mãe, com infinita paciência, permitiu que você tivesse em sua casa de escorpiões a pítons e até um crocodilo chamado Lupe.

Hiriart – Agora que estou pensando em minha mãe, coloco nela um pouco da responsabilidade porque – e ela não escolheu isso – ela era alérgica a cães e gatos. Então esse meu chamado pela natureza não poderia ser suprido por animais de estimação convencionais e, além disso, nunca tive irmãos, sou filho único.

Quando minha mãe fez doutorado nos Estados Unidos, nos mudamos para um lugar numa floresta, na costa de Massachusetts. Eu tinha uns 3 anos e meio. Alguns dizem que a infância é o destino.

Quando voltamos para a Cidade do México, como não era mais possível tirar de mim o que já havia sido criado, eu era uma criança selvagem. Me cerquei de todos esses organismos com que já convivia, sempre os considerei como membros da família.

Por isso, o título do livro é Fieras Familiares, que é uma alusão a A Minha Família e Outros Animais, de Gerald Durrell, um livro que foi muito formativo para mim. Ele vê os humanos e os animais não-humanos com o mesmo nível de afeto.

BBC – Introduzindo aqui o seu “museu vivo”, conte-nos sobre o primeiro dos personagens citados, o axolote.

Hiriart – O axolote foi um dos primeiros animais com que convivi quando voltei ao México.

Você tem que dizer “os axolotes” porque embora na imprensa, especialmente internacional, a espécie mais destacada [desse anfíbio] seja o axolote Xochimilco, existem outras 17 espécies e todas estão em perigo de extinção hoje.

‘Alguns dizem que hoje o axolote está em toda parte, exceto onde deveria estar’ — Foto: Getty Images via BBC

BBC – E por que você os chama de ‘filhos eternos’?

Hiriart – Às vezes digo que eles são como um humano que permanece em estado fetal. É uma larva de salamandra que, no caso de algumas espécies aqui no México, não sofre metamorfose.

Isso se chama neotenia, eles permanecem como larvas eternas, como personagens infantis eternamente.

É por isso que costumo dizer que se trata da chave para a eterna juventude, mas acho que é mais uma larva que envelhece como uma criança perene, como uma criança gigante.

BBC – Parece um paradoxo, como você diz no livro, que o axolote seja comum, mas não em seu mundo normal. Você poderia nos explicar isso?

Hiriart – Alguns dizem que hoje o axolote está em toda parte, exceto onde deveria estar. Está até nos projetos de lei, nas campanhas políticas, nas camisetas, há fazendas de axolotes em laboratórios, museus, casas particulares. Mas em seu habitat natural, em liberdade, restam pouquíssimos.

Então isso é um paradoxo total do Antropoceno [a era caracterizada pela influência humana] se repetindo com mais e mais espécies. Há um termo usado que diz “extinto na natureza”, como se houvesse outra opção.

Às vezes não se entende que os organismos de uma espécie não são a espécie, um axolote em um aquário não é a espécie axolote, porque a espécie é uma série de todas as interações que ele faz com outros organismos e o nicho que ocupa em particular em seu ambiente.

BBC – No livro você diz que ao invés de “Antropoceno” devemos falar sobre “Capitaloceno”.

Hiriart – Francisco Serrato é o autor que fala do Capitaloceno, pois nem todas as comunidades humanas têm uma interação tão deteriorada com o ecossistema.

Então, dizer Antropoceno é um pouco injusto, não são todos os humanos.

A essência do capitalismo é transformar a natureza em recursos, chamamos de “recursos naturais”, como se fosse uma mercadoria. A natureza é claramente parte desse motor em que o ganho imediato é o único objetivo almejado.

BBC – Outro personagem que muitos certamente lembrarão ao ler seu livro é Güera Rodríguez, sua píton albina. Como você acabou com uma píton de quatro metros enrolada em seu braço quando era adolescente?

Hiriart – Decidi deliberadamente contar as histórias dos meus tropeços zoológicos porque acho que contém algo mais rico narrativamente.

Mas também por conviver com esse tipo de animais por muitos anos, algum tipo de tropeço é quase garantido mais cedo ou mais tarde. Neste caso, com Güera Rodríguez, foi claramente uma situação atribuída ao descuido de minha parte.

Você tem que ser muito claro sobre a interação que vai fazer com o corpo para que não leve à confusão. E eu a alimentei e ao mesmo tempo comecei a fazer outra coisa em seu terrário.

E então o bicho confundiu os estímulos, coloquei o rato, mas [a cobra] viu meu movimento e correu para mim como se fosse comer. É muito diferente um animal ou uma cobra te morder em legítima defesa, é como um golpe, como se te rejeitasse, não é como vir até você pensando que você é o lanche.

BBC E por que esse nome, Güera Rodríguez?

Hiriart – Como fica claro no livro, minha mãe é uma personagem central, que sempre me apoiou muito.

Ela tinha uma influência muito clara nos nomes dos animais, e quase todas os tipos albinos que tínhamos recebiam nomes, porque o irmão mais velho da minha mãe, meu tio Humberto, era albino.

A Güera Rodríguez recebeu esse apelido porque no México “güero” é loira, mas Güera Rodríguez também foi uma das primeiras feministas mexicanas e minha mãe foi muito feminista.

Minha tia Berta, irmã dela, estava muito envolvida no movimento feminista dos anos 1960. Eu fui educado só por mulheres, acho que foi isso que me salvou um pouco, mulheres e répteis.

BBC – Na segunda parte do seu livro, “Museu vivo em liberdade”, como graduado da faculdade, você viaja para muitos cantos do mundo para ver animais em estado selvagem. Conte-nos sobre seu encontro com o Solitário George, a famosa tartaruga de Galápagos que morreu em 2012. O que você sente ao pensar nela hoje?

Hiriart – Penso em algo triste. Ela já foi considerada o animal mais raro do mundo, no sentido de que não havia outro de sua espécie e foi a última tartaruga de sua espécie.

Embora o que aconteceu com o Solitário George fosse algo incomum na época, agora está se tornando mais recorrente.

Algo parecido acontece com os rinocerontes brancos no norte da África. Restavam três e agora só dois. E assim há muitos exemplos. Como as vaquitas aqui no México, que são toninhas endêmicas [um cetáceo], das quais restam apenas cerca de 12. Que chance elas têm a longo prazo?

Então eu acho que o Solitário George não funcionou como lição, como o ensinamento que parecia na época em que se dizia “isso nunca mais vai acontecer”, “nunca mais teremos um desse tipo”. Está se tornando mais comum.

BBC – Você disse que não aprendemos a lição. Isso me leva a perguntar sobre sua viagem a Bornéu. Como foi seu encontro com os orangotangos?

Hiriart – Eu acho que, quando temos um contato próximo com qualquer um de nossos parentes vivos mais próximos, que são os orangotangos, os gorilas e os chimpanzés, há essa noção de que estamos vendo a humanidade daquele primata. Mas para mim é o contrário.

O que se revela é como somos próximos dos primatas, ou seja, os macacos que somos. Tem muita gente que não gosta de enfrentar isso.

Nós arrastamos os grilhões das religiões que tentaram durante séculos nos convencer do contrário, mas somos apenas mais um tipo de animal no planeta.

Normalmente, as pessoas veem esses organismos em zoológicos e obviamente perdem toda a dimensão. Ver um pobre primata no zoológico é como ver um humano na cadeia.

Os orangotangos estão cientes de seu cativeiro, estão perfeitamente conscientes de que estão presos.

Eu sempre disse que essa coisa dos zoológicos mostrarem os leões e os ursos polares como o “maiores sucessos” em um país de onde eles não são é completamente fora de contexto.

Hoje em dia, os zoológicos devem mostrar a fauna local, que é aquela que você deve aprender a apreciar e conservar.

BBC – No livro você fala sobre um “cataclisma de partir o coração” no habitat dos orangotangos.

Hiriart – É absolutamente desesperador, porque a Indonésia, e as ilhas de Bornéu e Sumatra em particular, que são as únicas ilhas com orangotangos, foram alvo de um dos piores ecocídios já registrados, se não o pior.

Na década de 1980, Bornéu era a ilha com maior biodiversidade do planeta, mas se seguiram quatro décadas de extração indiscriminada de madeira e, por muitos anos, a maior parte da madeira do mundo ocidental veio de lá.

E depois dessa derrubada, a palma foi introduzida para obter o famoso dendê. É um grande absurdo trocar o lugar mais biodiverso do mundo pela matéria-prima do batom, biscoitos, sabonetes e outros produtos de higiene pessoal.

Muito desse óleo de dendê e essa suplantação do ambiente natural pelas monoculturas responde à pressão dos mercados ocidentais.

Existem muitos produtos globais que contêm óleo de dendê. O exemplo clássico é o ovo Kinder, que tem dentro um brinquedo que todos os bebês desejam. Ou a Nutella.

A população de orangotangos caiu 80% nas últimas duas décadas, sendo reduzida a um quinto do que era há pouco tempo. E é muito triste porque eles são os humanos da selva. É isso que significa seu nome, homem da selva, porque ele é uma espécie muito próxima de nós.

Eles têm muitos traços culturais. Usam ferramentas, têm cultura, medicina, fitoterapia, quando se machucam usam plantas que têm qualidades analgésicas.

Isso nos surpreende, às vezes, mas deve ser o que consideramos normal. Continua a nos surpreender que os animais sejam inteligentes quando já deveríamos supor que eles são.

BBC – Quando um relatório da ONU que falava sobre um milhão de espécies ameaçadas de extinção foi publicado em 2019, foi manchete em todos os meios de comunicação. Mas a situação não mudou muito desde então. O mesmo acontece com as mudanças climáticas, apesar dos estudos cada vez mais conclusivos. Como comunicar efetivamente a grave crise da biodiversidade?

Hiriart – Não sei. Eu sei que o que não deu certo, que é repreender a humanidade pelos seus excessos, é inútil. É como dizer a um adolescente que álcool faz mal.

A censura não deu certo, o alarmismo também não, porque as pessoas ainda não sentem esse alarme. Mas mais cedo ou mais tarde veremos.

Ou seja, as crises climáticas começam a bater na porta de muitos lugares e as pessoas ficam surpresas, como os incêndios na Austrália e na Califórnia, mas elas foram avisadas.

No livro eu tento usar o humor para abordar temas muito ásperos. Não desvalorizo, mas tento uma abordagem diferente, um pouco humorística e com um pouco de apreciação estética, com uma certa alusão poética.

Eu, como muitos biólogos, não compartilho de uma visão antropocêntrica de que os humanos são a coisa mais importante. Somos um pequeno galho, perdido em algum lugar, na árvore da vida.

Mas o argumento que vejo agora que muitos autores estão usando e que pode funcionar é voltar ao discurso antropocêntrico, e dizer às pessoas que o que está acontecendo, essa extinção em massa, vai ter consequências na qualidade de vida.

Em outras palavras, se você não vai se preocupar com o que está acontecendo por puro ecossistema, por pura biodiversidade, comece a se preocupar porque o que estamos fazendo é como queimar sua casa, é como tirar parafusos da mesa em que você está se inclinando e de repente a mesa vai cair.

Definitivamente, isso trará consequências muito drásticas para a humanidade. Já está trazendo, mas nas próximas duas ou três décadas eles serão muito, muito maiores. Teremos crises de refugiados climáticos muito fortes e o que é muito triste com a biodiversidade é que uma vez que você a perde, você não pode colocá-la de volta no lugar.

Há uma falsa ideia, por exemplo, de que o reflorestamento está fazendo florestas, e isso é completamente falso. Reflorestamento são monoculturas de árvores, são fazendas de árvores, reconstruir uma floresta leva séculos e é isso que eu acho que às vezes a gente não dimensiona.

É por isso que você tem que voltar o debate para as pessoas. Devemos questionar se o que acreditamos ser qualidade de vida justifica não sacrificar o meio ambiente, mas sim sacrificar as próximas gerações de humanos.

Estamos caindo de cabeça do penhasco com as mãos presas ao celular.

BBC – Pensando nas gerações futuras, no livro você fala sobre a chegada em sua vida de um ser “mais difícil de cuidar do que 200 camaleões”: sua filha Damiana, que vai completar 6 anos. Como você consegue, apesar da crise da biodiversidade e da crise climática, manter a esperança?

Hiriart – É importante dizer que é impossível evitar a crise climática, porque é um processo histórico, ou seja, a crise climática agora é a resposta a processos históricos de 20, 30 anos atrás.

Mas a crise climática pode ser mitigada, a aceleração pode ser desacelerada.

Há muitas medidas que são francamente fáceis de tomar, mas que são muito pouco populares. Se todos os governos do mundo as tomassem, haveria uma mudança muito significativa.

Uma dessas medidas é que todas as embalagens sejam retornáveis, ponto final. Se você fizer todas as embalagens retornáveis, estará tirando a pressão do plástico do mundo.

Ou que nenhum livro já venha embrulhado em celofane. Nenhum. Acabou a moda de as coisas virem embrulhadas em plástico.

BBC – E em relação à crise da biodiversidade? Imagino que as pessoas que leram seu livro ou as que estão acompanhando esta entrevista estejam se perguntando como podem ajudar.

Hiriart – Acho que o primeiro passo é não ignorá-la, descobrir o que está acontecendo.

Muitas pessoas, mesmo aquelas que leem os jornais, sentem que as coisas estão acontecendo longe delas, mas não percebem que a crise de perda de espécies e extinção em massa está a 100 quilômetros [de distância]. Há uma espécie em extinção ali.

Descubra também quem está lutando pela conservação e apoie esses grupos e faça lobby por ele. Todo governo deveria ter uma campanha ambiental integrada em seu discurso para vencer. E se não tiver, isso deve lhe custar votos.

E é muito importante começar a ter pensamento crítico. Ou seja, não cair no discurso das empresas.

Por exemplo, a solução para a mobilidade urbana não é trocar os carros tradicionais por elétricos, como todos dizem. Substituir a fábrica de veículos por carros elétricos não vai ajudar em nada. Gerar eletricidade, não importa como você faça isso, é uma deterioração ambiental.

A solução é o transporte público e a bicicleta.

Os pais também podem contribuir. É preciso parar com o discurso de que é preciso matar todos os insetos, mesmo aqueles que não estão fazendo nada.

E é preciso desenvolver mais a literatura ligada à natureza. Ainda são poucos os escritores e eles são necessários para criar consciência e pensamento crítico.

Fonte: G1

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