Uma das marcas mais chocantes da personalidade humana é a crueldade. Basta prestar um pouco de atenção nos noticiários, nas pessoas à nossa volta e em nós mesmos.
Veja nos campos de futebol, ou em qualquer competição esportiva, onde as emoções ficam mais afloradas. Perceba também nos locais de trabalho, nas salas de aula. Em todos os casos, os que se saem bem das competições se sentem mais fortes, mais poderosos, mais espertos. Um prazer que, não raras vezes, extrapola os limites da sensação pessoal e se transforma em ações abertas de chacota e de humilhação contra os que não tiveram a mesma sorte.
E existem outras crueldades nem sempre percebidas como tal. Negar esforços para ensinar a ler e a escrever os que não sabem, escondendo deles o mundo e os direitos que têm, não é uma crueldade abominável? Não é crueldade dos professores, quando dão aulas de péssima qualidade aos estudantes justificando baixos salários, roubando-lhes o direito de aprender no tempo adequado os conhecimentos que farão falta no futuro? E quando se nega direito à vida aos animais, e quando se encara a violência contra eles como algo de menor gravidade do que maltratar os seres humanos? O que dizer dos médicos que não comparecem nos horários certos aos seus locais trabalhos abandonando pacientes? E dos políticos que desviam recursos públicos que deveriam ser destinados ao bem-estar de uma nação? É tudo crueldade, uma crueldade sem fim.
O ser humano é cruel nas relações com todas as vidas, inclusive com as vidas humanas. Não nasce assim, aprende a ser assim. É bom relembrarmos o óbvio. A crueldade é inversamente proporcional ao espírito de solidariedade, à capacidade de enxergar o outro, à forma generosa de ver a vida. Como desejarmos um mundo melhor, se praticamos ações de crueldade todos os dias? É bom ter o termômetro dos opostos sempre à vista: mais crueldade, menos solidariedade, menos paz. Porque o discurso tão comum sobre a paz e contra a violência não tem a mínima eficácia diante do hábito da crueldade.
De onde vem tanta crueldade? Desde a infância aprendemos que devemos vencer sempre e, para vencer, somos lembrados permanentemente para não sermos perdedores, como alguém que tem nome e sobrenome. Você vai ficar que nem o fulano! Na escola, zoamos os feios, gordinhos, damos apelidos humilhantes aos colegas. Não é por acaso que bullying é corrente até nos locais de trabalho. A crueldade cresce de forma abundante no mundo contemporâneo movido a espírito egocêntrico.
Porque o que importa é vencer, mesmo que muitas vezes tenha que ser de forma ilegítima. Na sociedade individualista e competitiva é assim. Somos treinados para sermos assim. É fácil saber de onde vem a crueldade. Vem da educação que recebemos e, na vida adulta, quando já temos capacidade de discernir, do modelo de vida que escolhemos.
Mas como não se nasce já munido de crueldade, a não ser em casos de doença, ainda há esperanças. Não é fácil mudar a relação com todas as coisas da vida, é verdade. Entretanto, como a crueldade é algo que se aprende, a notícia maravilhosa é que podemos desaprendê-la se quisermos. Isso significa que ainda podemos ter um mundo melhor e uma vida de paz.
É mais simples do que parece. É só querer e começar sem esperar a iniciativa dos outros. Mesmo que seja sozinho. Para isso, existem algumas reflexões muito importantes para começar. Por exemplo: por que ainda não começamos a nos reeducar, abandonando as atitudes cruéis que praticamos no cotidiano? Um mundo melhor e a vida de paz não valem esse esforço? Se vamos continuar matando os seres vivos para nos alimentar, festejando o sofrimento dos animais nos rodeios, abandonando os cachorros e gatos, abandonando as crianças, os doentes, os famintos, os jovens, então para que perdermos tempo pregando a paz que não queremos, ou queremos só pela metade?
Não existe meia paz, meia violência, meia guerra, meio assassinato, meio crime. A maior desgraça para nós mesmos, e para as futuras gerações, é fazermos de conta que não praticamos crueldade todos os dias. É fazermos de conta que crueldade é dos outros e não está à nossa mesa, nem nas nossa relações e atitudes.