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Da autoconsciência e da senciência – Parte 2

24 de março de 2009
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Um dos autores que se dispuseram a contestar as teses de Peter Singer sobre a autoconsciência e o princípio da igual consideração de interesses foi o advogado norte-americano Gary Francione, um dos expoentes do pensamento abolicionista.

Francione ressalta que a autoconsciência, junto com a racionalidade e a linguagem, já era usada como critério para distinguir animais humanos e não humanos desde a filosofia clássica e moderna. Desse modo, a filosofia de Singer sequer pode ser descrita como paradigmática. A premissa singeriana de que os animais não se importam com a vida, mas sim com o modo como são tratados, também já está presente nos primeiros filósofos utilitaristas, como Jeremy Bentham. Decano do bem-estarismo, Bentham afirmava que o problema não é o uso de animais em si, mas a forma (cruel ou benevolente) como os usamos.

Francione, então, simplifica e ao mesmo tempo radicaliza o critério para a atribuição de direitos básicos a um animal. Para ele, a senciência é a única característica que importa para definir se devemos respeitar ou não a vida de um ser. Se é senciente, afirma Francione, o animal tem interesse em continuar vivendo. Afinal, a senciência é um meio para o fim da sobrevivência. Francione vai adiante e afirma que a senciência é por si só um indicativo de autoconsciência: quando sente dor, o animal percebe-se com indivíduo, pois sabe que é ele quem está sofrendo.

Da mesma forma, a capacidade de planejar o futuro não implica que um animal não se importe com sua própria vida e não esteja disposto a lutar por ela (que sua única preocupação seja o sofrimento imediato da dor). Francione cita um exemplo curioso: o caso de um ser humano que tenha a memória recente afetada (como o personagem do filme Amnésia): este ser humano hipotético tem uma capacidade muito limitada de planejar o futuro, mas seria ilógico afirmar, em decorrência disso, que ele não se importaria tanto com a sua vida ou que lhe tirar a vida é um dano menor que a de um ser humano que tenha a memória intacta. Como dito acima, tal tese restringe o respeito à própria vida humana.

Do imperativo de preservar a vida animal decorre, na filosofia de Francione, que não podemos usar animais para quaisquer fins humanos pois, como no caso da escravidão humana, ao fazê-lo estamos reduzindo-os à categoria de objetos, cujos interesses básicos automaticamente perdem primazia ante os interesses de seus proprietários. Francione, portanto, elimina qualquer ambiguidade no que se refere à justificação moral do uso de animais em experimentos de laboratório. Nós, humanos, devemos nos abster totalmente de usar animais não humanos, para qualquer fim e, enquanto a abolição não é alcançada, boicotar todos os frutos dessa exploração – que é a prática do veganismo. Esta é a síntese da teoria abolicionista de Francione.

A senciência, além de tudo, tem a qualidade de ser um critério muito mais objetivo e, portanto, menos controverso que a autoconsciência. Ela é também mais abrangente. E uma consequência importante de seu emprego é que ela elimina as ambiguidades e hierarquias da filosofia singeriana. Em função dessas lacunas e hierarquias, não tardará o dia em que, a despeito do seu papel na revitalização do debate sobre direitos animais, a obra de Singer será uma fonte valiosa para os que preconizam a exploração animal. E, de fato, pela posição ocupada pelo autor e seu papel no debate contemporâneo, sua obra poderá transmutar-se na mais poderosa arma em defesa da exploração animal. De fato, o ambientalista Marc Dourojeanni já acusa os defensores dos direitos animais de interpretarem erroneamente a obra de Singer. Afirma ele, de forma inequívoca:

Baseados numa leitura pouco lúcida dos escritos do filósofo Peter Singer e, em especial de seu livro Libertação Animal (versão portuguesa de 2004), essas pessoas consideram que os humanos não têm o direito de matar animais e, assim, não devem se alimentar deles, nem muito menos matá-los para outros usos (couro, pele, penas) ou como consequência de atividades como a pesquisa científica ou as touradas, brigas de galo e rodeios. Também estão contra a caça e a pesca e, claro, contra qualquer tratamento aos animais que possa parecer cruel numa ou outra forma[1].

Ele se equivoca ao supor que os abolicionistas têm Singer como referência principal, mas não ao supor que o autor não preconiza a tal abolição da exploração animal. Além disso, desconsiderando o debate ético, como tantos outros, relega a adoção do veganismo à mera questão de “opção pessoal” – o que, naturalmente, elimina a possibilidade de atribuição de direitos, pois direito não é algo que se pode optar por violar. O conhecimento e a credibilidade do autor sobre o tema, aliás, podem ser medidos pelo fato de ele ignorar totalmente o conceito de senciência e demonstrar desconhecimento de distinções básicas da biologia, ao equiparar animais, bactérias e vírus. Não obstante, é esse tipo de despreparo intelectual que devemos esperar dos críticos da filosofia dos direitos animais.

Na filosofia de Francione, muito mais coerente, por outro lado, tais distinções perdem o sentido. Todas as vidas sencientes merecem igual consideração de fato, o que quer dizer que interesses básicos iguais não podem ser colocados numa balança em função de critérios secundários. Desse modo, qualquer consideração sobre autoconsciência, teste do espelho ou capacidade cognitiva dos animais não humanos torna-se ociosa e descartável no debate sobre os direitos animais. A questão é muito mais simples: todos os animais – com a possível exceção das esponjas – são sencientes. Por mais rudimentar que seja, eles têm a autopercepção de serem organismos vivos e seu interesse básico é continuar vivos – mesmo que não tenham a capacidade cognitiva para manifestar tal interesse. As diferenças que os separam de nós são, como já disse Charles Darwin, de grau, e não de espécie. Matá-los e explorá-los é, portanto, um dano moralmente injustificável. Respeitar sua vida e sua liberdade, nosso dever.

[1] DOUROJEANNI, Marc. Ambientalismo e Direitos Animais. In: O Eco. 9 de janeiro de 2007. Disponível em: http://www.oeco.com.br/marc-dourojeanni/42-marc-dourojeanni/16408-oeco_20295.

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