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ALAGAMENTOS

Chuvas extremas com potencial de gerar desastres são cada vez mais comuns em partes do país

Dados históricos indicam que frequência de grandes temporais cresce década após década

29 de abril de 2023
9 min. de leitura
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FOTO: RAHEL PATRASSO/REUTERS

Por Marcos Pivetta

Dados históricos e projeções futuras indicam que chuvas extremas, como as que assolaram o litoral norte de São Paulo durante o Carnaval deste ano e provocaram 65 mortes, não são um fenômeno passageiro ou localizado. São uma variável do novo clima em movimento do século XXI, embalado pelo aquecimento global, que fez a temperatura média do planeta aumentar quase 1,2 grau Celsius (ºC) desde os anos 1850. Mas o risco de desastres associados a tempestades não é o mesmo para todos ou em toda parte do país. Ele é maior nas áreas em que se concentra a maior parcela da população, como nas grandes cidades do vasto litoral nacional e nas regiões Sudeste e Sul, e entre as pessoas mais pobres que moram em lugares mais expostos a inundações e deslizamentos de terra.

É um cenário complexo, em consonância com as informações e previsões de uma vasta literatura científica sobre o tema, resumida nos relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), inclusive no último deles, lançado em 20 de março deste ano. À medida que a temperatura média global for aumentando durante este século, o IPCC projeta elevações na quantidade total de chuvas em grandes parcelas do território brasileiro, como nas regiões Sudeste e Sul, e diminuição no Centro-Oeste, em grande parte do Nordeste e no leste da Amazônia.

Às vezes, uma mesma localidade pode ser alvo, em diferentes meses de um mesmo ano ou em anos distintos, tanto de chuvas extremas como de secas severas. “A maioria dos desastres no Brasil é do tipo hidrológico e geológico e está ligada ao excesso ou falta de chuvas”, comenta o climatologista José Marengo, especialista em mudanças e riscos climáticos do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). “São deslocamentos de terra ou enxurradas, ou grandes secas em períodos de estiagem prolongada que aumentam o risco de incêndios e de escassez hídrica.”

Na década passada, em sete dias choveu mais de 100 mm na capital paulista, segundo dados do Inmet

O comportamento da pluviosidade no Brasil ao longo das últimas seis décadas retrata essa realidade cheia de nuances. Dados históricos compilados pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) indicam que o valor médio da chuva anual acumulada nas áreas situadas abaixo da metade sul dos estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul aumentou nos últimos 30 anos entre 50 e 250 milímetros (mm). Nessa parte do território nacional foi registrada redução de pluviosidade apenas em uma pontinha do oeste do Rio Grande do Sul, perto da fronteira com o Uruguai e a Argentina. Também houve aumento na média do total anual de chuva acumulada no Espírito Santo, sul de Minas Gerais, sudoeste de Mato Grosso e alguns pontos da Amazônia, sobretudo em sua porção ocidental. Em todo o Nordeste, no centro do Brasil e na parte oriental da Amazônia, houve diminuição no valor da pluviosidade média anual acumulada (ver mapa). Esses valores saltam à vista quando se compara a média das chuvas anuais registradas entre 1991 e 2020 com o período anterior de 30 anos, entre 1961 e 1990.

Desde 1935, a OMM (Organização Meteorológica Mundial) preconiza a adoção das chamadas normais climatológicas como valores de referência para um determinado parâmetro do clima, como a quantidade mensal ou anual de chuvas ou os valores das temperaturas médias, mínimas ou máximas em uma região. A partir da sucessão de valores registrados em períodos de 30 anos, calcula-se a normal climatológica de um parâmetro para uma localidade. A fórmula tem como objetivo chegar a um valor que sirva de base, como ponto de comparação, para saber se o clima atual está mudando em um certo local ou tem se comportado da forma esperada, ou seja, dentro dos valores da última normal.

Um aumento de 50 ou 100 mm no total de chuva acumulada em uma cidade como São Paulo, onde chove em média, segundo as normais climatológicas, cerca de 1.600 mm por ano, pode não parecer muito. Mas é preciso colocar esse dado em perspectiva. Um mm de chuva registrado equivale a 1 litro de água sobre uma área de 1 metro quadrado. Portanto, um aumento de 50 mm na pluviosidade média anual significa que caíram 50 litros de água a mais do que o esperado sobre uma superfície equivalente a um quadrado com 1 metro de lado. É preciso ainda levar em conta de que forma uma elevação (ou diminuição) de chuvas se distribui ao longo do tempo. Em alguns lugares, a precipitação anual acumulada pode diminuir, mas aumentarem as chuvas extremas. “Um episódio de chuva concentrada de 50 mm pode gerar mais problemas e preocupações do que cinco chuvas de 10 mm distribuídas em dias diferentes”, comenta a meteorologista Danielle Barros Ferreira, do Inmet.

No ano passado, o Inmet divulgou um levantamento que mostra um aumento na ocorrência de dias de chuva forte e concentrada em três capitais brasileiras analisadas. Desde os anos 1990, a cidade de São Paulo, a mais populosa do país, é um caso ilustrativo dessa tendência. A partir de dados coletados sempre em uma mesma estação meteorológica da capital paulista, localizada no Mirante de Santana, na zona norte da metrópole, uma equipe do Inmet contou o número de dias com precipitação elevada, com grande potencial de gerar problemas e eventualmente mortes. Foram contabilizados dias com chuva extrema de três níveis: acima de 50, 80 e 100 mm.

Na década de 1960, houve 40 dias com pluviosidade extrema, 37 acima de 50 mm e três com chuva superior a 80 mm. Mas nenhuma ocorrência de chuva diária ultrapassou os 100 mm. A partir dos anos 1990, sempre foram registrados ao menos 60 dias com chuvas extremas a cada década. Entre 2011 e 2020, apareceu um indício ainda mais preocupante. Ocorreu uma pequena redução no número de dias com chuvas superiores a 50 mm, mas um aumento expressivo na quantidade de episódios de pluviosidade concentrada dos outros dois níveis. Comparando os resultados da década passada com a anterior (2001 a 2010), houve uma redução discreta na incidência de dias com chuva acima de 50 mm (de 53 para 47), mas um aumento significativo de dias com chuva acima de 80 mm (de 9 para 16 ocorrências) e 100 mm (de 2 para 7). “Na capital paulista, as chuvas volumosas tendem a ficar mais frequentes”, comenta Ferreira. Um padrão similar de intensificação dos dias de chuva extrema também foi observado em duas capitais situadas em pontos opostos do país, Belém, no Pará, e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

A intensidade das chuvas torrenciais no litoral norte paulista em fevereiro passado parece ser um ponto fora da curva mesmo quando se leva em conta o cenário atual de incertezas e extremos climáticos. Na virada de 18 para 19 de fevereiro, várias cidades da região receberam em menos de 24 horas níveis de chuva sem precedentes ou que, segundo as normais climatológicas, só deveriam ocorrer uma vez a cada 100 anos. Os dois casos mais eloquentes se deram nos municípios vizinhos de Bertioga e São Sebastião, onde a precipitação em 24 horas foi equivalente, de acordo com a média histórica, ao que deveria chover ao longo dos meses de janeiro e fevereiro. Em Bertioga, caíram 683 mm de chuva, a maior pluviosidade registrada no país em um intervalo de tempo tão curto. Em São Sebastião, choveu um pouco menos, 627 mm, segundo dados do Cemaden.

Apesar de ter causado grandes estragos materiais e ter desabrigado cerca de 2 mil moradores locais em vários pontos do litoral norte, 64 das 65 mortes verificadas na região ocorreram em São Sebastião. Nesse município, mais pessoas se encontravam em áreas de risco, sujeitas aos efeitos de deslizamentos de terra provocados pelas águas que desceram as encostas da serra do Mar. Em Bertioga, houve muitas áreas alagadas, mas a ocupação humana, marcada pela presença de condomínios de médio e alto padrão, está mais longe das escarpas montanhosas e não houve óbitos.

“Foi uma situação assustadora”, relembra o meteorologista Pedro Leite da Silva Dias, do IAG (Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo). “Até perdermos a eletricidade e o acesso à internet por volta de 1 hora da manhã do dia 19, acompanhei a formação e a disseminação da chuva no site do centro europeu de meteorologia [ECMWF] e pelos dados do Cemaden.” Ao lado da mulher Maria Assunção Faus da Silva Dias, também meteorologista e hoje professora aposentada do IAG-USP, Dias estava hospedado na casa de amigos em uma praia de São Sebastião afetada pelas chuvas e pelo deslizamento de terra, mas onde não houve mortes.

Simultaneamente à chegada de uma intensa frente fria da região Sul, a formação de um pequeno ciclone na costa do litoral, entre a cidade paulista de Ubatuba e a fluminense Paraty, elevou de maneira substancial a intensidade das chuvas entre 18 e 19 de fevereiro. Esse ciclone, pequeno, mas desastroso, relata Dias, apareceu claramente nas imagens do radar do Cemaden e de satélites dos Estados Unidos.

Chuvas intensas são frequentes e esperadas na região de São Sebastião no verão, estação com o maior índice de pluviosidade em boa parte do país. No entanto, os especialistas apontam que houve uma sincronia perfeita, e perversa, que levou ao aprisionamento – ancoramento, no jargão da área – de nuvens carregadas de água sobre um trecho do litoral norte por um período de muitas horas. “Parte dessa chuva poderia ter caído sobre o mar ou se deslocado para outros pontos, mas uma série de fatores conhecidos atuou para que ela tenha ficado parada ali por muito tempo”, diz o pesquisador Pedro Camarinha, especialista em mudanças climáticas e desastres, que trabalha na sala de situação do Cemaden.

Outra parcela da umidade direcionada para o litoral norte veio da maior evaporação de água no oceano Atlântico, que estava ao menos 1 ºC mais quente do que o normal. Para completar o quadro, os ventos de superfície sopraram em uma direção que interagiu com o relevo da serra do Mar. Isso intensificou o chamado efeito orográfico e retroalimentou a formação de chuvas por horas. “Não posso afirmar, com certeza absoluta, que uma chuva dessa magnitude é decorrente do aquecimento global, mas ela é compatível com esse cenário”, pondera Dias.

No caso do litoral norte paulista, as particularidades do município de São Sebastião potencializaram o quadro climático que resultou na tragédia. Lá, boa parte da população pobre está estabelecida em áreas de risco, perto ou nas encostas da serra, há grande desigualdade social e escassez de planos de ação para mitigar os efeitos de chuvas extremas. “Fiz um ranking dos municípios paulistas mais vulneráveis a desastres relacionados a deslizamentos de terra na minha tese de doutorado, que defendi em 2016 no Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]”, diz Camarinha. “Levando em conta múltiplos fatores climáticos e não climáticos, São Sebastião foi classificado como o município em situação mais crítica tanto no tempo presente como nas próximas décadas.”

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