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LEVADOS PARA O DESERTO

Ativistas do Qatar denunciam matança de cachorros em situação de rua antes da Copa

8 de dezembro de 2022
5 min. de leitura
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Milady, cadela que teria sobrevivido a um ataque a tiros no Qatar | Foto: Reprodução

Gatos em situação de rua, como o que participou da coletiva de imprensa de Vinicius Júnior, são comuns pelas esquinas de Doha. Cachorros, por outro lado, praticamente não existem. E isso pode ter um motivo. Ativistas em defesa dos direitos animais afirmam que o governo do Qatar promoveu e permitiu a morte de milhares de cães sem raça definida nos meses que antecederam a Copa do Mundo.

Organizações não-governamentais e veterinários com atuação no país enviaram relatos e fotos de animais mortos e machucados a tiros ou a facadas em Doha e em cidades vizinhas. Eles dizem que denunciam os casos à polícia, mas pouco ou nada é feito para investigar os autores.

As organizações também acusam a administração pública qatari de recolher milhares de cachorros sem tutor para removê-los das ruas de Doha, levando-os para um lugar desconhecido. De fato, em 19 dias no país, os jornalistas do UOL encontraram apenas um punhado de cachorros passeando com seus tutores, mas nenhum em situação de rua desacompanhado.

No Qatar, assim como em muitos países de cultura islâmica, a maioria da população não considera cachorros como animais domésticos e acredita que eles são perigosos e podem transmitir doenças. Correntes mais ortodoxas do islamismo ensinam que os cachorros são animais “impuros” e impróprios para o convívio com o ser humano.

Um dos casos de maior repercussão no país aconteceu em julho deste ano, quando um grupo de quatro homens armados invadiu um terreno e matou 29 cachorros a tiros, incluindo filhotes. Outros três ficaram feridos, incluindo duas cadelas grávidas. A chacina teria acontecido porque um dos cachorros teria mordido um dos atiradores. A reportagem recebeu um vídeo que mostra um cachorro agonizando após supostamente ser atingido por tiros na semana passada, em ataque que teria deixado três animais mortos e feridos.

A reportagem procurou o Comitê Supremo, braço do governo que organiza a Copa, para perguntar sobre as denúncias feitas pelos ativistas. O órgão informou um e-mail de contato direto com o governo qatari, para o qual a reportagem mandou perguntas, até agora não respondidas.

Em outubro, a ONG Paws Rescue Qatar denunciou o caso de uma cadela chamada Milady, encontrada com resquícios de balas alojados pelo corpo. “Quantos cachorros vão ser baleados antes que alguém leve isso a sério?”, escreveu a ONG no Instagram. Outras imagens foram enviadas mostrando cachorros amputados e exames de raio-x provando a presença balas no corpo dos animais.

Há anos as organizações tratam de cachorros sem tutor, vacinam, castram, inserem um microchip e os disponibilizam para adoção. Elas dizem, porém, que o governo tem recolhido esses animais e os levado a uma propriedade no interior do país. Em uma das fotos enviadas à reportagem, a remoção de um cachorro é feita por um carro da empresa Al Mukhtar, especializada em controle de praga.

O governo impede que os ativistas visitem esse espaço e fiscalizem suas condições. “Estimamos que cerca de 5 mil cachorros foram levados até hoje, mas eles não têm capacidade de abrigar tantos animais assim. Pedi várias fotos desse abrigo, mas eles nem sequer me deixam ver uma foto”, afirmou Noora Al-Thani, do grupo Qatar Animal Rescues. “Uma vez recolhida, a maioria nunca é vista ou ouvida novamente”, disse ela. Desde novembro do ano passado, o número de cães nos abrigos foi drasticamente reduzido.

Asiáticos são mais distantes de cachorros do que ocidentais

A suspeita dos ativistas é que os animais são deixados para morrer no deserto ou que são mortos a tiros. Mas as denúncias de matança de cachorros não chegam a chocar a maioria da população qatari por causa do distanciamento afetivo entre as duas espécies nos países de cultura árabe e muçulmana.

O historiador Alan Mikhail, da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, afirma que os cachorros eram vistos como uma ferramenta útil nas cidades medievais árabes porque comiam lixo e deixavam as ruas mais limpas. Mas no século 19, epidemias de peste, cólera e malária levaram a população a associar as doenças ao lixo e, em consequência, aos animais que o comiam.

Apesar do Alcorão não proibir o contato de seres humanos com cachorros, eles continuam sendo vistos como animais sujos por muitos fiéis. “A relação dos qataris com cachorros é assim por causa da religião”, afirma a veterinária brasileira Luciana Petry, que trabalha desde o ano passado em uma clínica em Doha. “Se um muçulmano toca num cachorro ele precisa lavar a mão sete vezes antes de rezar. Os árabes e asiáticos de forma geral têm muito medo. Quando eu passeio com meus cachorros na rua, as pessoas passam por eles pulando.”

Noora Al-Thani, da Qatar Animal Rescues, afirma que o número de cães recolhidos pelo governo está aumentando, mas o número de animais que eles dizem ter sob guarda tem diminuído. “Quando perguntamos o que aconteceu com eles, não obtemos resposta. Eles nos dizem que o abrigo do governo é um local ‘confidencial’ e não nos deixam visitá-lo por conta própria. Eles tratam os abrigos de animais como se fossem uma prisão de segurança máxima.”

Os animais também enfrentaram a fúria de parte da população, que acredita em notícias falsas que circulam em redes sociais chamando os cachorros em situação de rua de “vadios e cruéis, que matam animais selvagens e atacam crianças”. Os ativistas dizem que essas postagens fazem mais moradores denunciarem os cães sem tutor ao governo ou até os matarem.

Fonte: UOL

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