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BASTIDORES

Animais torturados e condenados à morte, cientistas esgotados: como é um estudo com cobaias

24 de maio de 2023
7 min. de leitura
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Foto: Gustavo Basso/UOL

Cercado de ratos em caixas herméticas, Maurício Trotta, 44, lidera desde 2022 o biotério da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) na Vila Clementino, zona sul da capital paulista, onde animais, sobretudo roedores, são criados às centenas para servir de cobaias às pesquisas da universidade. Veterinário há 15 anos, Trotta é apaixonado pelo trabalho. Ao mesmo tempo, imagina o dia em que a ciência não precisará mais de espaços como esse.

“Tenho muito orgulho do meu trabalho. Faço com muito amor para que esses animais sofram o mínimo possível. Mas gostaria mesmo é que alcançássemos um nível de avanço científico em que eles não fossem mais necessários”, diz. “É desconfortável pegar um animal em quem você realizou testes por dois, três meses, e, ao final, ter que tirar a vida dele.”

Salvo raras exceções, os animais deixam os biotérios para nunca mais voltar: se não morrem ao longo dos experimentos nos laboratórios (o que ocorre com uma minoria, nas pesquisas mais agressivas), passam por morte induzida ao final do processo. Por lei, eles não podem participar de outros estudos — segundo especialistas, podem comprometer o resultado. Já adotar animais pós-testes envolve um controle rigoroso, uma vez que muitos testes incluem ameaças de biossegurança.

Entre 2018 e 2021, mais de 16 milhões de animais serviram a experimentos, revela um estudo inédito com dados do Concea (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal) obtidos via Lei de Acesso à Informação por pesquisadores — eles precisaram entrar com três recursos, um deles à Corregedoria- Geral da União.

“É um pouco assustadora a dificuldade que foi obter os dados”, conta o bioquímico Wagner Quintilio, 49, que trabalha no Instituto Butantan, na zona oeste de São Paulo. Ele assina o estudo com Marcelo de Trói, da Ufba (Universidade Federal da Bahia). Juntos há dez anos, eles decidiram pedir os dados quando Quintilio preparava uma aula sobre o assunto e comentou com Trói a lacuna dessas informações no Brasil.

Foto: Gustavo Basso/UOL

Na cidade de Araçariguama (SP), o Butantan abriga 900 cavalos para ensaios clínicos para a produção de soros, por exemplo, antiofídico e antitetânico. Dez cavalos da fazenda foram escolhidos para os estudos do soro com anticorpos contra covid-19: o vírus inativado foi inserido nos animais, que responderam produzindo proteínas de defesa imunológica.

Segundo as informações obtidas por Quintilio e Trói, 14 mil cavalos e outros animais foram usados em estudos no país em 2018; já na pandemia de covid-19, o número saltou para 413 mil, em 2021.

Entretanto, o Concea diz que os dados cedidos pelo próprio conselho não refletem a realidade. Segundo a coordenadora Kátia de Angelis, 49, parte dos pesquisadores e comissões de ética preencheram incorretamente o cadastro.

“Estamos fazendo um pente-fino nos 12 mil relatórios e detectamos um ou dois zeros a mais, afetando a contagem”, afirma. O conselho pretende publicar outro balanço até o início de 2024.

Arte | UOL

‘Estoque’ animal

Há 11 anos no biotério da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), o biólogo Eduardo Gonçalves, 30, ainda lembra de seus primeiros dias como técnico do laboratório em Florianópolis. “Passei noites sem dormir: na época ainda se usava o termo ‘controle de estoque’ para se referir a animais mortos por falta de espaço”, conta.

“No passado, já houve casos de, no final do ano, com feriados e ninguém para tocar os ensaios, simplesmente matarem os animais. Ou seja, tivemos que sacrificar à toa.” Com o avanço da legislação, a situação melhorou muito, pondera.

Gonçalves cuidava dos cachorros usados nos estudos, prática agora abolida na universidade. “O pior é que eu era o responsável por escolher os que iam para as pesquisas. Você cria um laço e se sente responsável por encaminhá-lo para fim da vida dele”, lamenta. “No transporte você já notava a agonia, o sofrimento deles.” Hoje, o biólogo cuida de cães e roedores.

Arte | UOL

Outro profissional, que prefere não se identificar por temer julgamento dos colegas, conta que desenvolveu ansiedade e várias vezes tirou licença psiquiátrica enquanto trabalhava em um biotério. “Num momento, pensei: ‘Ou faço a morta induzida dos animais, ou faço a minha'”, relata.

“Refletindo hoje, o que esse pensamento me diz é que eu sentia que algo estava errado. É preciso pôr um limite, que é o quanto de sofrimento iremos tolerar.” Desde que saiu do biotério, passou a trabalhar junto a sociedades protetoras dos animais.

De acordo com um estudo publicado na revista Science em março de 2023, 86% dos profissionais de laboratórios e biotérios relataram sofrer pelos animais ao longo de suas carreiras nos EUA — o termo para a síndrome é “fadiga por compaixão”. Outros levantamentos incluem a incidência de estresse pós-traumático e burnout.

Na Unifesp, onde há 23 biotérios, Maurício Trotta diz que também há pressões: ambientes estéreis e sob controle constante deixam os animais e os cientistas estressados.

Além disso, acrescenta, é preciso lidar com críticas quase diariamente. “Você é muitas vezes considerado quase que um clandestino, tendo que esconder a profissão, temendo ser questionado até por colegas: eles veem um veterinário que maltrata animais ao trabalhar com experimentação”, afirma. “Mudaria de área não por não gostar do trabalho, mas para evitar esse julgamento.”

Buscando alternativas

Desde 2013 a bióloga Bianca Marigliani, 43, milita pela abolição do uso de animais na ciência. Estrategista sênior da ONG norte-americana Humane Society International, ela considera “arcaico” o modelo e critica a demora na busca por alternativas. “É preferível, do ponto de vista ético e científico, utilizar alternativas, mas para muitos pesquisadores é mais fácil injetar substâncias em pequenos animais e ver o que acontece.”

Na década de 1990, o estudo de métodos alternativos a animais passou a pipocar em um ou outro laboratório do país. Na USP e na UFRJ surgiram trabalhos utilizando pele artificial. Na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), trocou-se o coelho por um tipo de teste in vitro que usa sangue humano.

Foto: Gustavo Basso/UOL

Após 13 anos tramitando no Congresso, a Lei Arouca foi aprovada para regulamentar o uso científico de animais, em 2008. A diretriz não contempla embriões, insetos e moluscos. “Já há consenso, por exemplo, que polvos têm sentimentos, dores e angústias, mas pesquisas com eles são liberadas”, diz Marigliani, que mora em Petrópolis (RJ). Ela defende a aprovação de uma lei federal mais ampla para proibir definitivamente o uso de animais no país.

Todos os especialistas ouvidos pelo TAB criticaram a falta de investimentos nas instituições públicas para desenvolver métodos alternativos no Brasil. Procurado, o MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) informa que o último edital na área foi lançado em 2016, com investimento de R$ 1,12 milhão através do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Entre 2018 e 2022, o total caiu para R$ 475 mil. Há perspectiva de lançar um novo edital em 2024.

Na iniciativa privada, o investimento parte principalmente do setor de cosméticos, que, desde fevereiro, está parcialmente proibido de utilizar animais em experimentos com substâncias já conhecidas. Um exemplo é a Episkin, do grupo L’Oréal, que desenvolveu uma epiderme humana equivalente à natural, que foi reconhecida internacionalmente como método alternativo. Instalada no Rio de Janeiro desde 2019, a fábrica produz pele e córnea equivalentes, reconstituídas de células humanas.

Para Wagner Quintilio, um dos autores do estudo com dados do Concea, além do investimento há ao menos outros dois entraves para que cientistas troquem modelos animais por outros métodos. “Primeiro, que pesquisadores saiam de suas zonas de conforto para trabalhar com métodos com os quais não estão acostumados. O outro é o desenvolvimento dessas técnicas.”

Até 2024, diz Kátia de Angelis, a coordenadora do Concea, uma série de métodos alternativos devem ser reconhecidos pelo conselho, mas não está no horizonte abolir totalmente o modelo científico que envolve animais vivos.

“Dos 225 prêmios Nobel que a gente teve na área da medicina e da fisiologia desde 1901, aproximadamente 188 utilizaram animais. Nós somos a favor e estamos lutando junto para poder reduzir cada vez mais, mas não temos, nem nacional nem internacionalmente, como pensar que vamos continuar evoluindo sem a utilização de animais.”

Fonte: Tab UOL

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