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PULVERIZAÇÃO

Agrotóxico é usado como 'arma química' contra aldeias indígenas em MS

22 de fevereiro de 2022
Rodrigo Bertolotto
7 min. de leitura
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Integrantes da aldeia Itay Ka`aguyrusu, em Douradina (MS), posam para foto diante de casa de reza da etnia guarani kaiowá (Foto: José Medeiros/UOL)

As colinas riscadas pela soja criam uma paisagem ondulatória para quem viaja pelas rodovias da região de Dourados (MS). Passados alguns quilômetros, o cenário tão oscilante quanto um gráfico econômico só é interrompido por pequenos trechos de mata. Ocultas dentro de alguns deles estão aldeias indígenas.

“Eram 4h da manhã, ainda estava escuro, e meu avô achou que estava chovendo, pelo barulho das gotas batendo no teto de lona. Quando saiu, sentiu o cheiro bem fedido e percebeu que era agrotóxico”, conta Erileide Domingues, liderança da aldeia Guyraroká, no município de Caarapó. “A gente vive no meio do veneno. Respira, come, bebe e veste o veneno que eles jogam.”

A pulverização noturna com aviões é mais um capítulo da conflituosa relação dos guaranis-kaiowás com seus vizinhos fazendeiros. Os casos são tão frequentes e sistemáticos em Mato Grosso do Sul que foram definidos como “agressões químicas” pelo procurador Marco Antônio Delfino, do Ministério Público Federal, que leva à frente várias denúncias.

“É como uma guerra. Eles começaram com tiros para intimidar e tratores empurrando nossas ocas. Depois passaram a atacar a gente com veneno, que é uma arma que mata aos poucos. Eles querem correr com a gente daqui, mas nós vamos resistir”, afirma Ezequiel João, liderança no assentamento Guyra Kambi’y, em Douradina.

Segundo a legislação, os aviões pulverizadores só podem voar a mais de 500 metros de distância de áreas habitadas. Não é o que se vê em vários flagrantes gravados por celulares dos rasantes e sobrevoos em terras indígenas na região.

Educação pulverizada

Toda feita de alvenaria e pintada de branco, verde e marrom, a escola na aldeia Guyraroká foi inaugurada em abril de 2019. No mês seguinte, o colégio já virava notícia: uma nuvem de calcário e agrotóxico fez quatro crianças e dois adolescentes serem hospitalizados. Eles tinham dores no peito, estômago e cabeça, além de tosse seca, falta de ar, vômitos, diarreia e irritação cutânea.

Os estudantes tomavam café da manhã às 6h no refeitório da escola quando o vento trouxe a contaminação da fazenda vizinha, que revirava o solo para trocar o pasto pelo cultivo da soja. “Tentamos proteger a comida, mas um pó branco cobriu tudo. Não temos muito o que comer na aldeia, e tivemos que jogar tudo fora”, relembra Erileide.

A demarcação do território Guyraroká está no STF (Supremo Tribunal Federal), onde tramita desde 2014, entre decisões e recursos, esperando uma votação do plenário. Essa demora jurídica e as ofensivas dos fazendeiros fizeram a OEA (Organização dos Estados Americanos) inspecionar as condições de vida dessa população.

Antonia Urrejola, advogada chilena que presidiu a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), visitou em setembro de 2019 o território e solicitou medidas cautelares para o Estado brasileiro proteger os 110 indígenas (metade deles menores de idade) daquela aldeia. “De lá pra cá, não foi feito nada por parte das autoridades. E nossa vida é lutar até onde der”, reclama Erileide.

O próximo passo seria uma denúncia na ONU (Organização das Nações Unidas) sobre o uso do agrotóxico contra as comunidades originais, como aconteceu com o Paraguai — em 2019, o país vizinho se converteu no primeiro condenado no mundo por violação dos direitos humanos com motivo ambiental. A pena decorreu do caso do agricultor Ruben Portillo, que morreu em 2011 vítima de seguidas pulverizações promovidas pelas fazendas vizinhas, de propriedade de colonos brasileiros na cidade de Curuguaty, no Departamento de Canindeyú. Como as autoridades paraguaias não investigaram o caso, o país foi punido pela ONU.

Defensivos no ataque

Os chamados “defensivos agrícolas” estão sendo usados para atacar populações nativas também no vizinho Mato Grosso. No município de Confresa, o cacique Elber Ware’i, da etnia Tapirapé, diz que até as abelhas sumiram, de tanto inseticida jogado nas lavouras para matar besouros e percevejos. “Nós estamos sem mel para nossa bebida sagrada, o kawi, que fazemos da fermentação da mandioca e amendoim”, conta Elber, líder da terra indígena Urubu Branco. “As abelhas são atraídas pela flor da soja e morrem envenenadas.”

Outro relato é de Aquilino Tsiruia, primeiro padre católico vindo da etnia Xavante. “Agora em janeiro teve nova contaminação. Todo ano é assim, com o pessoal sofrendo de escamação na pele e dor de barriga. O pior é que o índio nem pode usar sua medicina porque as ervas também receberam o pesticida”, descreve Tsiruia as ações na aldeia da qual é originário, Marãiwatsédé, na cidade Alto Boa Vista, localizada entre os parques do Xingu e do Araguaia.

Pesquisas lideradas pelo professor e pesquisador Wanderlei Pignati, do Instituto de Saúde Coletiva da UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso), apontaram a presença de agrotóxico em até 100 quilômetros para dentro da Reserva Indígena do Xingu. Isso porque as nascentes e os cursos de seus rios estão em áreas de produção intensiva de soja, milho, algodão e cana-de-açúcar. O mesmo cenário se repete no Pantanal.

Pignati ficou conhecido por seu levantamento sobre o aumento dos casos de câncer e de má formação em crianças em municípios do cinturão da soja. A conclusão semelhante chegou Medardo Vázquez, pediatra e professor da Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina. Segundo ele, o número de bebês malformados nas clínicas locais aumentou na mesma proporção que a soja dominou o campo daquela província.

Vázquez faz parte da Rede de Médicos dos Povos Fumigados, cujo trabalho foi retratado no documentário “Viaje a los Pueblos Fumigados”, do premiado diretor Fernando “Pino” Solanas. O filme de 2018 mostra também o drama dos Wichis, etnia da província argentina de Salta que viu grande parte de sua população ser obrigada a migrar para as cidades próximas, depois de a vegetação típica ser trocada por plantações de transgênicos.

Pressão e indenização

Duas aldeias de Mato Grosso do Sul conseguiram indenização depois de comprovarem nos tribunais o ataque com agrotóxico. A primeira delas foi a comunidade Tey Jusu, no município de Caarapó. Uma professora filmou em 2015 os rasantes do avião agrícola sobre a oca que serve de escola, lançando uma chuva tóxica sobre 70 moradores dali.

Na decisão judicial de 2019, o fazendeiro Francesco Canepelle, a empresa C-Vale e o piloto responsável pela pulverização foram condenados a pagar uma indenização de R$ 150 mil, a ser aplicada na educação e saúde dos indígenas.

“Minha comunidade também pediu indenização em 2015, mas não saiu até agora. Nossas roças de mandioca e abóbora ficaram escuras e morreram. Os poços e os animais também se contaminaram. Mas eles queriam outras provas. Precisa mais que isso? Tem muito filho de fazendeiro que é advogado, juiz e político. Então, as autoridades não olham muito para o lado dos índios”, reclama Ezequiel João. “Por isso a gente batalha. A Justiça é que nem feijão: precisa de pressão.”

Perto dali, José Aquino conta que as casas do assentamento Itay Ka’aguyrusu tiveram de mudar de lugar porque a plantação de soja avançou na direção delas. “Recuamos uns 100 metros pra dentro da mata no nosso tekohá [território, em guarani], porque desse jeito a gente não ia sobreviver. Era muito trator pulverizando ali.”

Aquino diz que a caça também foi prejudicada. “Antes a gente pegava tatu, cutia e capivara no que sobrou de floresta. Agora está difícil encontrar, e a gente ainda fica com medo que o animal silvestre esteja contaminado.”

Esse assentamento, criado em 2010, faz parte do movimento de retomada de terras originais da etnia. Nos primeiros anos, houve conflito com tiros, rojões e escavadeiras dos fazendeiros derrubando casas, hortas e currais. Ultimamente, os indígenas relatam ameaças verbais, mas a principal forma de incomodá-los tem sido a aplicação desregrada de agrotóxico.

A Famasul (Federação de Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul) afirmou à reportagem do TAB que difunde cursos de boas práticas e prevenção de acidentes na aplicação de defensivos agrícolas a produtores e trabalhadores do campo em todo o Estado e que acompanha as denúncias de mau uso na Justiça e aguarda o desfecho dos processos.

Enquanto isso, os guarani-kaiowá oram cantando diante da casa de reza. Pedem chuva, demarcação e alimento para Nhanderu, o Deus criador do mundo. Um dos cânticos relata como eles vivem atualmente: “Não tem mais mato para buscar sapé e fazer nossa casa/Antes tinha/Agora não/O que Nhanderu fez em cima da Terra não tem mais/Antes tinha/Agora não”. Como os homens, as cigarras vão sobrevivendo a tanto inseticida por lá e cantam também no meio da mata.

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