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A Constituição do Equador e o direitos dos animais em um mundo em transformação

16 de setembro de 2011
24 min. de leitura
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Por Cristiano Pacheco*

A Constituição do Equador de 2008, Arts. 71 e 72, reconheceu no dispositivo constitucional direitos intrínsecos à natureza, os chamados “derechos de la naturaleza” (direitos da natureza). O tema é efervescente na doutrina do direito, especialmente pelo fato de que os derechos de la naturaleza definem a natureza como sujeito de direitos, o que vem sendo amplamente debatido mundialmente no âmbito do Direito dos Animais. A convergência com o pulsante legado de Darwin, o Direito dos Animais e a provocação trazida pela constituição equatoriana sugerem, num primeiro olhar, o inevitável estremecimento estrutural de um direito de base tradicionalmente patrimonialista, em que as relações jurídicas se desenvolveram unicamente entre o ser humano e a propriedade (coisa).

Introdução

A humanidade no início do século XXI vivencia profundas transformações impulsionadas pela crise ambiental mundial e efeitos do aquecimento global. Para Anthony Giddens “estamos vivendo numa civilização que, até onde somos capazes de determinar os riscos no futuro, parece insustentável ”. Diante da crescente desarmonia na relação do homem com o meio ambiente , surge interessante inovação legislativa na Constituição do Equador. O avanço consiste no reconhecimento e criação – de forma pioneira no mundo – do chamado derecho de la naturaleza, onde o texto constitucional equatoriano passa a reconhecer a natureza como sujeito de direitos.
O presente artigo não tem o objetivo de aprofundar o estudo detalhado sobre a totalidade do texto constitucional equatoriano, nem tampouco desenvolver estudo comparado em relação à Constituição Federal brasileira. O presente estudo visa destacar o importante impacto da nova legislação ambiental equatoriana, em âmbito acadêmico e doutrinário, à luz do legado de Charles Darwin, assim como de filósofos e pensadores contemporâneos como Fritjof Capra e Tom Regan diante da inovação que vem do Equador.

1 Desequilíbrio de direitos e obrigações entre o homem e a natureza

Com o evoluir da relação entre o homem e o meio ambiente, considerando a já evidente escassez de recursos naturais indispensáveis à sobrevivência no planeta, como água potável e alimentos, surge deste momento histórico e paradigmático, mais precisamente na constituição equatoriana, uma nova percepção jurídica da natureza.

Dentro da proposta do texto constitucional equatoriano que subverte a ótica tradicional considerando a natureza sujeito de direitos, ocorre a pertinente e interessante reflexão: dentro de um suposto equilíbrio contratual entre o que a natureza fornece ao homem gratuitamente e o que o homem dá em troca, há equilíbrio de deveres e obrigações? Há reciprocidade, equilíbrio jurídico?

O surgimento dos derechos de la naturaleza, expresso em um texto legal de uma nação, é uma inovação profunda. A sociedade civil equatoriana agrega novos argumentos e visões que, em verdade, não são novos, pois não criam, mas sim resgatam sabedoria indígena, trazendo-a democraticamente para o texto constitucional. Surge o anseio, refletido na lei, por maior equilíbrio obrigacional entre os seres humanos e a natureza, argumentando os cidadãos – em debates prévios à assembléia constituinte – que “a natureza só teria obrigações e nenhum direito na relação com o homem” e que “somos parte de ecossistemas e que estes também precisam viver e ter direitos”, assim como nós seres humanos somos detentores do direito de usar os recursos naturais conforme nos convém, devolvendo pouco ou nada para a natureza .

2 O Art. 71 da Constituição do Equador

Conforme referido, o texto constitucional equatoriano é paradigmático no âmbito da legislação ambiental mundial. Transcorridos três anos da assembléia constituinte que em 2008 reconheceu a natureza – Pacha Mama – como sujeito de direitos, o assunto ganha crescente efervescência na América Latina e Europa e é objeto de debates acadêmicos e estudos comparados. Diversos aspectos em diferentes campos do conhecimento despertam interesse. Dentre eles, se destacam: a aprovação do texto legal se deu graças à construção e articulação promovida por intelectuais e não por agentes políticos, ou seja, a aprovação do texto foi amplamente discutida no âmbito da sociedade civil, não sendo assim resultante das usuais manobras de “mercados líquidos” ou interesses de lobistas; A votação ocorreu por meio de plebiscito, com massiva participação indígena equatoriana que representa 42% da população; assim como o texto constitucional democraticamente faz referência e acolhe o conhecimento ancestral indígena sobre a natureza. O que não poderia deixar de ser lembrado também é o interessante e curioso fato de que los derechos de la natureza nasceram justamente no Equador, nação que abriga as Ilhas Galápagos, internacionalmente conhecida como Santuário de Darwin, laboratório de sua notável, contemporânea e até hoje pulsante Teoria da Evolução das Espécies.

Hugo Echeverria , professor e advogado residente em Galápagos, Equador, explica a dimensão da inovação em seu país e sua expressão para o mundo:

La nueva Constitución de la República Del Equador ratifica y sistematiza la importante evolución normativa equatoriana en materia ambiental que ha sido evidente deste, al menos, las reformas constitucionales de 1983; com posteriores avances em las reformas de 1996 y la codificación de 1998. Además, amplía el âmbito de protección constitucional para reconocer y garantizar derechos de la naturaleza, convertiéndose en la primera Constituición del mundo em aplicar esta nueva tesis jurídica .

Echeverria completa, com propriedade:

Para el derecho ambiental, la vigência Del Estado constitucional de derechos y de justicia plantea un modelo garantista de los derechos ambientales de las personas y de la población; y, desde el año 2008, también de los derechos de la naturaleza .

A constituição equatoriana assim preceitua no preâmbulo:

Nosotras e nosotros, el pueblo soberano del Ecuador reconociendo nuestras raíces milenarias, forjadas por mujeres y hombres de distintos pueblos, celebrando a la naturaleza, la Pacha Mama, de la que somos parte y que es vital para nuestra existencia, invocando el nombre de Dios y reconociendo nuestras diversas formas de religiosidad y espiritualidad, apelando a la sabiduría de todas las culturas que nos enriquecen como sociedad (…)

Passando ao dispositivo que trata da natureza:

Art. 71. La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estrucutura, funciones y processos evolutivos.

Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidade podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la naturaleza.

El Estado incentivará a las personas naturales y jurídicas y a los colectivos, para que protejan la naturaleza, y promoverá el respeto a todos los elementos que forman un ecosistema.

Pela leitura do texto, é evidente a inovação constitucional. À primeira vista, se destaca a superação da visão antropocêntrica que considera a natureza coisa ou recurso natural, e agora, pela visão do texto constitucional equatoriano, passa a ser vista e conceituada como Pacha Mama (Mãe Terra), reconhecendo a natureza como sujeito de direitos onde a mesma possui, conforme o texto legal, o direito a que se respeite integralmente sua existência e manutenção.

A constituição em comento aprofunda e avança, incluindo também como sujeitos de direitos os ciclos vitais (ou ecossistemas), assim como preconizam o respeito a todos os seres vivos que formam um ecossistema (Art.71). Tal feita insinua e obriga, com hierarquia constitucional, a adoção de uma visão mais ampla que sugere também a necessidade de proteção dos demais seres vivos, expresso pelo termo “respeto a todos los elementos que forman un ecosistema” (Art.71). A norma constitucional, ao deferir direitos a seres vivos que habitam ecossistemas, definitivamente força o paradigma antropocêntrico indo ao encontro inevitável aos princípios da ecologia profunda, o Deep Ecology, desenvolvendo personalidade normativa sem precedentes em nenhuma constituição no mundo.

3 Ecologia profunda (Deep Ecology) e direitos da natureza

Para o físico Fritjof Capra, “a ecologia profunda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida” . A ótica do autor se encontra fora de uma ética conservadora predominante, qual seja a calcada no antropocentrismo e coisificação da natureza e dos seres vivos. A visão antropocêntrica, em pleno Século XXI, ainda insiste em ignorar a noção da vida como um todo, negando a realidade científica da inter-relação entre os sistemas vivos propostos pela ecologia profunda. Capra completa dizendo:

Dentro do contexto da ecologia profunda, a visão segundo a qual esses valores são inerentes a toda a natureza viva está alicerçada na experiência profunda, ecológica ou espiritual, de que a natureza e o eu são um só. Essa expressão do eu até a identificação com a natureza é a instrução básica da ecologia profunda

Ingressar na ótica da Deep Ecology implica em adotar uma nova perspectiva e compreensão holística da vida, humana e não-humana, o que naturalmente acarreta desafios imensos e rupturas de paradigmas pouco enfrentados no campo filosófico e jurídico. Em constituições como a brasileira, na legislação ambiental pode ser facilmente identificada a linha antropocêntrica, já que a norma constitucional, no aspecto jurídico, representa criação jurídica do homem para que ele possa proteger-se dele mesmo , deixando para um segundo plano a possibilidade de reconhecer direitos em favor de outras formas de vida. A Constituição Federal brasileira assim preceitua: Art. 225, caput: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

É evidente a linha antropocêntrica ao limitar a proteção do meio ambiente ao interesse exclusivo do homem, desinteressando a qualidade do mesmo aos demais seres vivos. O parágrafo 1º, VII, da Constituição Federal brasileira não atribui valor intrínseco aos animais não-humanos, mas proíbe a crueldade contra os mesmos. Vejamos a expressão pelas seguintes decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

CONSTITUCIONAL (Arts. 23, VI e VII, e 225, Constituição Federal) – AÇÃO CIVIL PÚBLICA (Lei 7.347/85) – DEFESA À FAUNA (captura e transporte de “botos-cor-de-rosa”: INIA GEOFFRENSIS. (Ação Civil Pública nº 90.03.00593-1-SP, acórdão da 3ª Turma, Relator Juiz MILTON PEREIRA).

“Preservação da espécie no seu habitat natural. Defesa da fauna. A captura, transporte e exposição pública dos botos, violando as leis positivas e as leis da natureza, afetaram o meio ambiente, impondo-se o provimento judicial para a preservação e perpetuação das espécies”.

Neste caso, o casal de botos-cor-de-rosa estava exposto em um Shopping Center, dentro de um aquário para exposição pública mediante pagamento de ingresso e um deles acabou morrendo.

O Magistrado em primeiro grau julgou no sentido de que a captura de um dos animais e a morte do outro trouxe conseqüências para o “ecossistema dessa espécie”, além da crueldade contida no ato.

O mesmo entendimento adota o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul ao interpretar o Art. 225, caput, em acórdão proferido pela Primeira Câmara Cível:

“Tiro ao pombo, Crueldade aos animais, Constituição da República”. A Constituição da República protege a fauna e veda a crueldade aos animais. Defendem-se não só os animais de extinção, mas o próprio homem de sua agressividade em se comprazer com tais espetáculos de abate desnecessário, como se fossem esporte. O tiro ao pombo pode atenuar-se em tiro ao prato, sem danos maiores e em favor de um crescimento da sensibilidade humana, respeito entre as espécies .

A decisão colegiada é no sentido da preservação da flora e fauna e também no sentido de vedar a crueldade, quando refere na decisão que “não deixa de ser problema educativo: de não se fazer crueldade para se educar o homem, apurar a sensibilidade humana. E hoje, podemos ressaltar outra finalidade, não maior, que seria a de preservar a fauna, como um todo ambiental.”

Fica claro em ambos os julgados que, mesmo que a crueldade contra os animais seja proibida pela Constituição Federal brasileira, abrindo lacuna à instrumentalização da proteção animal, ainda assim o dispositivo constitucional tem como já dito, orientação eminentemente antropocêntrica sem atribuir em qualquer momento valor intrínseco aos animais ou à natureza, ou seja, longe de considerar o animal ou a natureza sujeito de direitos.

Já a constituição equatoriana e os instituídos direitos da natureza sugerem e legislam que os ecossistemas e seus “indivíduos” (animais) possuem valor intrínseco, ou seja, são sujeitos de direitos. Nesta linha e em perfeita harmonia com o texto constitucional referido, leciona mais uma vez Fritjof Capra : “essa compreensão sistêmica baseia-se no pressuposto de que a vida é dotada de uma unidade fundamental, de que os diversos sistemas vivos apresentam padrões de organização semelhantes”.

Em entendimento vanguardista e desafiador diante da visão jurídica tradicional civilista e patrimonialista, entende o referido autor que o dano causado a determinado ecossistema afeta diretamente (e não apenas indiretamente) a todos demais e a própria vida em sociedade, já que essa em si, também constitui sistema vivo, e a vida como um todo se dá através da interligação de sistemas, todos interdependentes. Com isso, surge a conclusão lógica e irresistível de que haveria valor intrínseco em cada sistema celular, multicelular, orgânico, ou seja, ser vivo, de que espécie ou forma for. Simplesmente pelo fato de se tratar de uma vida. Capra adiciona:

“Segundo a compreensão sistêmica da vida, os sistemas vivos criam-se ou recriam-se continuamente mediante a transformação ou a substituição dos seus componentes. Sofrem mudanças estruturais contínuas ao mesmo tempo que preservam seus padrões em teia”.

Com a assertiva o autor fundamenta a suma importância da preservação de cada ecossistema, individualmente, assim como de todas as espécies vivas em cada um existente.

O Art. 71 da Constituição do Equador atribui direitos à natureza, seus ecossistemas e “indivíduos” que os compõem. Seguindo a mesma lógica de raciocínio jurídico, qual seria o real obstáculo para a Carta Magna do Equador reconhecer os animais como sujeito de direitos?

4 Direitos da natureza e direitos dos animais

A histórica inovação da constituinte equatoriana exerce sua expressão maior ao reconhecer a natureza como sujeito de direitos – assim como seus elementos (indivíduos) que formam o ecossistema, pondo fim à exclusividade antes humana. Atribuir direitos à natureza e ao mesmo tempo excluir ecossistemas e animais, – como se “coisa” fossem, inanimadas, sem organismo, sem vida -, sabendo que todos coexistem em relação de plena interdependência com funções celulares e sistêmicas definidas – seria nada além do que negação da biologia, da ciência moderna e suas evidências. Inconveniência moral, bloqueio do saber. Pela ótica da Constituição do Equador, balizado no amplo conhecimento hoje disponível no legado de notáveis estudiosos, cientistas e filósofos como Darwin, Capra, Regan e tantos outros, não seria exagero nem especulação, então, admitir que todos os animais são também sujeitos-de-uma-vida. O filósofo Tom Regan pondera:

Então, eis a nossa pergunta: entre os bilhões de animais não-humanos existentes, há animais conscientes do mundo e do que lhes acontece? Se sim, o que lhes acontece é importante para eles, quer alguém mais se preocupe com isso, quer não? Se há animais que atendem a esse requisito, eles são sujeitos-de-uma-vida. E se forem sujeitos-de-uma-vida, então têm direitos, exatamente como nós. Devagar, mas firmemente, compreendi que é nisso que a questão sobre os direitos animais se resume .

A confluência das referidas visões de pensadores modernos, assim como pelo ainda contemporâneo Darwin, de fato são visíveis na redação da Carta Magna equatoriana, o que a torna cada vez mais interessante para o estudo multidisciplinar e aprofundado.

Não seria leviano afirmar que a referida constituição sugere profunda reflexão e definitiva quebra de paradigmas deste século, onde parece surgir um novo tipo de solidariedade entre espécies, humanas e não-humanas. Tal verdade se reflete nos atuais movimentos sociais globais, sendo que o Brasil é referência internacional no estudo e litigância pelo Direito dos Animais . Vale a referência histórico-evolutiva do tema no Brasil por um dos pioneiros juristas brasileiros a enfrentar a questão, o Promotor de Justiça Dr. Heron José de Santana Gordilho:

Foram os abolicionistas os primeiros a romper o absoluto silêncio que reinava no seio da nação brasileira, e até mesmo a igreja católica, que desempenhou um papel importante no processo de humanização dos escravos romanos, durante muito tempo ignorou o sofrimento do elemento servil brasileiro. (…) Ainda hoje, no entanto, milhões de animais sencientes, nascidos livres, são roubados, capturados, mutilados, vendidos como mercadoria, espoliados na realização de trabalhos forçados, ou simplesmente mortos e devorados, sem qualquer direito à defesa, e poucos de nós se compadece com o sofrimento desses seres, muitos deles tão próximos de nós na cadeia evolutiva. Será mesmo que nós temos o direito de tratar assim as demais espécies?

Retornando à constituinte equatoriana, no Art. 72 também fica clara a condição privilegiada da natureza quando a ela é atribuído o direito a ser restaurada. Vejamos: Art. 72. “La naturaleza tiene derecho a la restauración. Los servicios ambientales no serán susceptibles de apropriación; su proteccion, prestación, uso y aprovechamiento serán regulados por el estado”.

Na ótica da moderna Constituição que considera e conceitua a natureza e seus ecossistemas como sujeito de direitos, pela expressão “donde se reproduce y realiza la vida” (Art.71) surge inevitável provocação: seria possível interpretar a norma distinguindo los derechos de la naturaleza do Direito dos Animais? Ou seja, seria possível conceder direitos à natureza sem conceder igualmente aos sistemas vivos e aos animais? No cenário jurídico da constituinte em estudo, qual seria a diferença entre ecossistemas e elementos (Art. 71, leia-se indivíduos, ou seja, animais) que compõem os ecossistemas? Há dificuldade de valoração/identificação científica, ou ainda moral? Conforme bem explicita Tom Regan, seria possível, neste contexto, a natureza, Pacha Mama, ser sujeito de uma vida e o animal que nela habita não sê-lo? Faria sentido a natureza ser detentora de valor intrínseco e, ao mesmo tempo, todo o “restante” da vida, igual em gênero e diferente apenas em grau, não sê-lo?

5 Darwin, a evolução das espécies e o direito entre as espécies

A imensurável contribuição de Charles Darwin, ainda no século XVIII, parece ressoar em pleno século XXI. Tendemos cada vez mais a aceitar a “dura” realidade de que os animais humanos e não-humanos são iguais em gênero, diferentes apenas em grau, divididos por uma questão meramente cronológica e biológico-evolutiva. O estudo de Darwin aponta para a realidade de que somos todos – animais humanos e não-humanos – provenientes de uma espécie comum. Aceito isso, passamos a compreender a complexidade e grande esforço empreendido pela natureza e seus seres vivos, por trilhões de anos, para criar e recriar a vida no planeta, como uma grande célula solta no cosmos que vive em interdependência entre todos seus sistemas, internos e outros externos sequer conhecidos, em permanente transformação e adaptação.

Em 1844 a teoria da evolução natural passou a ter maior difusão no meio acadêmico com a publicação do trabalho anônimo intitulado Vestígios da História Natural da Criação, sugerindo que as obras da criação divina evoluíam com o passar do tempo . Em 1858, foi publicada a primeira edição de Sobre a Origem das Espécies por meio da Seleção Natural ou A Preservação das Raças Privilegiadas na Luta pela Sobrevivência.

O brasileiro Daniel Braga Lourenço, autor da obra “Direito dos Animais: Fundamentação e Novas Perspectivas” relata com propriedade o profundo impacto causado pela obra de Darwin:

Nesse magnífico livro, Darwin não deixava clara a descendência animal dos seres humanos, preferindo apenas citar que ela serviria para esclarecer “a origem do homem e sua história”. Meia palavra para o bom entendedor basta, mas somente em 1871, quando muitos já aceitavam as bases da teoria da evolução, publicou o The Descent of Man, (A Origem do Homem), no qual explicita o que antes havia dito nas entrelinhas.

Apesar de ter sido acolhida com alívio por grande parte da comunidade científica, houve objeções pertinazes e contundentes, principalmente vindas de setores ligados à Igreja. As idéias de Darwin deixavam pouco espaço para a intervenção divina e “reduzia” os seres humanos à condição de meros animais. A antiga e arraigada noção de que a humanidade integrava um grupo privilegiado e seleto de seres dentro de uma hierarquia permanente e divinamente ordenada perde completo sentido .

O impacto da publicação dos estudos de Darwin foi perturbador para o século XVIII, se consideramos o fato de que ainda hoje, em pleno século XXI, para muitos, e não somente para grupos religiosos, o ser humano ainda é considerado obra divina, logo, superior às demais espécies. Seus estudos e pesquisas científicas já desmascaravam esta falsa concepção, com evidência científica até hoje contundente e para muitos bastante desconfortável, mesmo que já transcorrido um século e meio da publicação.

De forma pertinente e esclarecedora, Lourenço cita em sua obra passagem de Jonathan Miller:

“Darwin, embora desconhecedor do processo genético em ação, reconheceu muito precocemente que não havia maneira de excluir a humanidade do processo evolucionário que ele havia descrito. Em 1871, após ter vindo adiar o que ele sabia que iria ser também uma conclusão controversa, tornou finalmente claro que também o homem não era mais do que o descendente modificado de antepassados mamíferos. Não afirmou, como tantas vezes levianamente se tem dito, que o homem descendesse dos macacos, mas sim, que o homem e os macacos eram descendentes modificados de um primata seu antecessor.”

Interessante esclarecer que, mesmo diante das evidências evolutivas trazidas, houve uma tentativa, quase desesperada, de manter o homem em posição especial e privilegiada na ordem evolutiva, como forma de garantir sua “divindade”.

Quanto ao tentado descaminho, Lourenço esclarece e coloca nos eixos a enorme distorção:

A teoria da evolução comprova, portanto, que o lugar especial dos homens no mundo é uma grande falácia. No entanto, por meio de uma argumentação igualmente falaciosa, a própria teoria evolucionista foi usada de forma absolutamente deturpada para justificar a colocação do homem como entidade superior às demais, na medida em que o mecanismo da “sobrevivência dos mais aptos” conduziria o homem a ocupar lugar de destaque. Em realidade, tal retórica pretende, mais uma vez, retornar ao arcaico esquema teórico de “Grande Cadeia do Ser”, onde todos os seres vivos são vistos como “inferiores” ao homem e colocados como meros instrumentos das suas finalidades. O mais incrível é que pessoas supostamente esclarecidas ainda sancionam tal posicionamento que, do ponto de vista biológico, constitui verdadeira aberração .

O estudo proposto diante da inovadora constituição equatoriana não poderia excluir a visão clarificadora da ciência ensinada por Darwin, assim como a de filósofos contemporâneos como Fritjof Capra e Tom Regan, com suas reflexões sobre a vida, seus sistemas e agora, a relação do homem com os animais não-humanos. O cruzamento de tais conhecimentos com a inovação trazida pelo Equador já causa efervescência acadêmica em outros países, ávidos pela novidade que vem da América Latina.

6 Considerações finais

É crescente a profusão do estudo e busca pela implementação e efetivação do Direito dos Animais no Brasil e no mundo, estimulado agora também pela provocativa Constituição do Equador. Ambos os temas levam evidente efervescência à academia, assim como no âmbito da sociedade civil global, propulsionando um novo paradigma ético estimulador de uma visão de direitos entre humanos e não-humanos.

Mesmo diante dos inúmeros avanços que sugerem um direito não-especista e inclusivo à vida não-humana, um dos obstáculos que se tem notado, em oposição aos referidos avanços, é a indiferença. Não somente pela ignorância relacionada ao desconhecimento sobre o tema, mas também a ignorância daqueles que preferem não conhecer mais a fundo a discussão, temendo abalar convicções íntimas que possam gerar desconfortos, tanto pessoais quanto no campo do convívio social. Fábio Corrêa Souza de Oliveira e Lourenço fazem a interessante reflexão:

“Vale observar que inclusive entre especialistas, os doutos, entre os cultores dos direitos fundamentais, do Direito Ambiental, predomina, usualmente, a falta do saber ou da reflexão, a desídia pela matéria, o descuido. Normalmente, a meditação é centrada no homem, o único personagem, o mais é contexto, figurante, paisagem. Muitos respondem: com tantos e graves problemas humanos, não é cabível se ocupar dos animais.”

Conforme bem colocam os autores, existe, no geral, a falsa concepção de que é preciso optar e que deve prevalecer sempre o interesse do homem indivíduo, não sendo viável a conciliação, pelo fato que não conseguimos absorver a complexidade e amplitude do problema. Completam Oliveira e Lourenço: “é preciso escolher entre o homem e o animal, que estão em oposição. Este juízo de confrontação, o qual de pronto coloca o interesse humano acima de qualquer outro, não permite a integração .”

O legado ainda pulsante de Darwin, o efervescente Direito dos Animais no promissor século XXI, combinado com a luz trazida por pensadores contemporâneos como Regan e Capra, não poderia deixar de ser analisado ou comparado à inovação, de impacto mundial, dos derechos de la naturaleza. A provocação vinda da Constituição do Equador sugere, num primeiro olhar, o inevitável e definitivo estremecimento estrutural de um direito de base civilista e historicamente patrimonialista, onde as relações jurídicas se desenvolveram e ainda se desenvolvem, unicamente, entre homem e propriedade (homem e coisa), em verdadeira negação à vida, com discriminação, antropocentrismo “contemporâneo” cego. Conforme lecionam Oliveira e Lourenço:

(…) restou consolidada no âmago da moralidade ocidental a visão de que o homem ocupa o centro de todas as preocupações. Nesse sentido, fácil é verificar que a maioria esmagadora dos sistemas jurídicos opera sobre as bases da dicotomia pessoa-coisa (animal) e que, portanto, a história das sucessivas gerações de direitos passa a ser identificada como uma forma de inclusão social e jurídica da própria espécie humana e tão somente dela. Artificialmente construiu-se a idéia de que a categoria “humano” é a única fundante e coincidente com a noção de “direito” .

A nítida impressão é a do surgimento de um cenário de pulsante avanço e quebra de paradigma milenar, no qual o amplo, profundo e multidisciplinar conhecimento disponível e acessível neste século impulsionam para conclusões cada vez mais difíceis de serem ignoradas. Descortina-se o irreversível surgimento de uma nova solidariedade entre as espécies que implica em significativas mudanças na relação jurídica entre animais humanos e não-humanos. Oscar Motomura sintetiza bem o crescente movimento que é transformador:

Minha própria experiência é que quanto mais entendemos a grande realidade na qual vivemos, mais humildes nos tornamos. Adquirimos um respeito excepcional por todos os seres vivos – sem qualquer exclusão. Passamos a ter um relacionamento melhor com todos. Desenvolvemos uma nova ética, não nos deixando levar por falsos valores. Conseguimos viver sem ansiedades, com mais flexibilidade e tolerância .

Mesmo diante de obstáculos, adversidades e alguns retrocessos, a contemporaneidade parece impulsionar para um futuro que clama por inclusão e igualdade de direitos entre os animais humanos e não-humanos, estes últimos em grande maioria, porém em enorme desvantagem, sem voz, vez ou direitos. O avanço legislativo constitucional concreto e mais promissor hoje no mundo – espelho de um novo tempo e de uma nova solidariedade entre os seres vivos – encontra berço na América Latina, na Constituição do Equador de 2008, pelos derechos de la naturaleza.

7 Referências bibliográfica

CAPRA, Fritjof, A Teia da Vida, Ed. Cultrix, São Paulo, 1996.

ECHEVERRIA, Hugo et al. Manual de Aplicación Del Derecho Penal Ambiental como Instrumento de Protección de Las Áreas Naturales em Galápagos. Sea Shepherd, World Wildlife Found y Galápagos Academic Institute for the Arts and Sciences de la Universidad San Francisco de Quito. Quito-Ecuador.

GLOBAL ALLIANCE FOR THE RIGHTS OF NATURE:
(http://therightsofnature.org/la-naturaleza-tiene-derechos/)

GORDILHO, Heron José de Santana. Direito Ambiental Pós-Moderno, Ed. Juruá, 2009.

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais – Fundamentação e Novas Perspectivas, Porto Alegre: 2008, Sergio Antônio Fabris Editor.

OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza, et LORENÇO, Daniel Braga, in JURIS POIESIS: Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, 2009, Ano 12, nº 12.
PACHECO, Cristiano de Souza Lima, Responsabilidade Civil Ambiental como Ferramenta de Sustentabilidade na Produção Rural, in GALLI, Alessandra. Direito Socioambiental, Curitiba, PR: Ed. Juruá, 2010.

REGAN, Tom, Jaulas Vazias, Ed. Lugano, 2006.

* Cristiano Pacheco é advogado, Graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Pós-Graduado em Direito Ambiental pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Mestrando em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), professor e autor de diversos artigos em livros e congressos nacionais e internacionais Membro do Instituto Abolicionista Animal (IAA) como Suplente da Diretoria de Educação e Membro da Comissão de Meio Ambiente da OAB/RS desde 2004. É diretor jurídico voluntário do Instituto Justiça Ambiental (IJA) e procurador em dezesseis ações civis públicas ambientais do Rio Grande do Sul ao Amapá. Em 2006, abriu o primeiro precedente na América Latina contra a pesca predatória de arrasto ilegal, prática que mais devasta os ecossistemas marinhos no mundo. O processo judicial foi tombado pelo patrimônio histórico do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, feito único por um advogado no país. Cristiano foi o primeiro advogado no Brasil a ingressar com uma ação civil pública pelo massacre ilegal de golfinhos na costa amazônica, no Amapá, em 2007. Em 2009 recebeu o Prêmio NAVIMECO “Amigos na Natureza”, na Sede da Polícia Federal de Natal/RN, pelas mãos de Rose Dantas, da Nature Viva Mangue (NAVIMA), em reconhecimento aos esforços em defesa dos cetáceos (golfinhos) no Brasil, decorrente de ação judicial exitosa ingressada na Justiça Federal de Macapá, no Amapá, via fax.

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