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Tríades chinesas visam os jaguares da Bolívia em busca de partes do "tigre americano"

Grupos se escondem por trás de negócios legítimos,Grupos se escondem por trás de negócios legítimos,Grupos se escondem por trás de negócios legítimos,Grupos se escondem por trás de negócios legítimos,Grupos se escondem por trás de negócios legítimos

14 de março de 2021
Vanessa Romo (Mongabay) | Tradução de Beatriz KaoriVanessa Romo (Mongabay) | Tradução de Beatriz KaoriVanessa Romo (Mongabay) | Tradução de Beatriz KaoriVanessa Romo (Mongabay) | Tradução de Beatriz KaoriVanessa Romo (Mongabay) | Tradução de Beatriz Kaori
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Imagem de um jaguar
Foto: Pixabay
Uma investigação de coleta de inteligência feita pela Earth League International e o comitê nacional holandês da IUCN revelou que sindicatos de tráfico controlados pela China são responsáveis pelo contrabando de partes de corpos de jaguares para fora da Bolívia.
Esses grupos se escondem atrás de negócios legítimos, como restaurantes e lojas, que também servem como frentes para o tráfico de outros animais selvagens e de drogas ilegais, foi o que a investigação descobriu.
Um influxo de investimento chinês em projetos de infraestrutura na Bolívia nos últimos anos coincidiu com um aumento na caça, com traficantes visando jaguares como substitutas para as populações quase esgotadas de tigres na Ásia.
Algumas autoridades bolivianas estão pressionando para que haja reformas legais que imporão sentenças mais pesadas para a vida selvagem, mas a crise política do país tem atrasado esses esforços no momento atual.
“Como passar a alfândega?”
“Você precisa subornar alguém. Não subornamos o oficial alfandegário, mas sim o policial, que é mais alto na hierarquia… ”
“Por contêiner?”
“Sim. Possível.”
“Você tentou?”
“[…] Eu só envio pro Brasil, tem mais empresas lá. Você pode contrabandear facilmente para o Brasil ou para o Peru.”
Esta é a transcrição de uma conversa, traduzida do chinês, entre um investigador disfarçado e um traficante de partes de corpos de jaguares, trecho de centenas de horas de filmagens que foram coletadas entre 2018 e 2020 na Bolívia.
Os investigadores, do grupo anti-tráfico Earth League International (ELI) e do comitê nacional holandês da IUCN (IUCN NL), procuraram expor um dos elos menos conhecidos na cadeia de tráfico deste icônico grande felino: os membros da comunidade chinesa na Bolívia que, acreditava-se, seria mais aberta com outros falantes de chinês do que com as autoridades locais que os investigavam.
Com a barreira do idioma fora do caminho, os investigadores chineses disfarçados da ELI foram capazes de descobrir informações importantes sobre esses traficantes: como eles se agrupam, onde operam e quais rotas usam para exportar as partes de jaguar para a Ásia. “O tráfico de jaguares não é apenas um problema de preservação, mas sim um crime organizado”, disse Andrea Crosta, CEO e cofundadora da ELI.
Esta investigação identifica pelo menos três desses grupos criminosos operando na Bolívia e compostos quase inteiramente por cidadãos chineses residentes. Os grupos estão concentrados nos departamentos de Santa Cruz e Beni, especificamente nos municípios de San Borja, Rurrenabaque e Riberalta. O meio de transporte preferencial é por avião, seja em voos comerciais ou embarque de cargas. O método depende da quantidade transportada e, em muitos casos, envolve suborno para uma autoridade local.
Embora esses sejam métodos antigos de tráfico de vida selvagem, a novidade é que o tráfico de jaguares está ocorrendo em novas áreas. Os investigadores encontraram carne de jaguar sendo vendida em pelo menos dois restaurantes em Santa Cruz, o que é uma dupla violação descarada: há muito tempo é considerado crime matar jaguares na Bolívia e, desde abril de 2020, também é considerado ilegal consumir qualquer tipo de vida selvagem. A investigação levanta preocupações sobre o que está acontecendo na Bolívia e se esforços colaborativos podem ajudar a combater o tráfico de jaguares.
Modus operandi dos traficantes e rotas de transporte
Para se encontrar com um vendedor de partes de jaguares na Bolívia, você precisa seguir várias etapas e passar em alguns testes. O contato inicial é geralmente realizado por meio do WeChat, o serviço de mensagens de celular mais popular entre os usuários chineses dentro e fora do país. Depois que uma reunião de acompanhamento presencial for garantida, os vendedores mostram apenas uma pequena parte de suas mercadorias. “Os vendedores não carregam muitas mercadorias à vista ou em locais de acesso imediato”, diz o relatório da ELI.
Após um início bastante ruidoso, a publicidade tornou-se mais discreta nos últimos anos. Até 2017, uma estação de rádio local em San Borja, Beni, transmitia constantemente um anúncio que oferecia a compra de “presas de tigre, de preferência grandes e limpas”. (A expressão chinesa para “jaguar”, 美洲虎 (měizhōu hǔ), significa literalmente “tigre americano”.) Em 2014, anúncios impressos procurando peças de jaguar também eram comumente circulados em áreas rurais. O silêncio atual também pode explicar em parte por que não houve novas apreensões de partes de jaguares desde janeiro de 2019, conforme relatado pelo Mongabay Latam.
“Temos indícios da presença de organizações criminosas internacionais”, diz Rodrigo Herrera, assessor jurídico do gabinete do Ministério do Meio Ambiente boliviano para a biodiversidade e áreas protegidas.
As descobertas da ELI, que foram compartilhadas com as autoridades bolivianas, identificam por meio de nomes e fotos membros de pelo menos três grupos criminosos envolvidos no tráfico de jaguares.
Acredita-se que uma dessas gangues, conhecida como Putian, tenha uma relação direta com o grupo criminoso de Fujian em Hong Kong. O sindicato Fujian é um dos mais poderosos grupos da tríade notória de Hong Kong. “O que queremos destacar é que esse negócio não está nas mãos de três ou quatro pessoas, mas de uma organização”, diz Crosta da ELI.
“A máfia chinesa escondeu cassinos, dirige atividades de lavagem de dinheiro e controla o negócio de cocaína na Bolívia”, disse um dos traficantes a um agente chinês disfarçado da ELI. A investigação mostra que esses sindicatos também têm negócios legítimos, incluindo restaurantes e lojas, que muitas vezes funcionam como uma fachada para o tráfico de partes de jaguares e outros tipos de contrabando, de animais selvagens a drogas.
Sua atividade, segundo fontes, está concentrada nos departamentos de Santa Cruz e Beni, dirigidos por cidadãos chineses que vivem em regiões remotas, seguindo um padrão observado por todo o resto da América Latina.
O método mais comum para mover partes de jaguar, como presas, ossos e até genitais, é por meio do transporte aéreo. “Para chegar [à China], evita-se aterrissar diretamente por avião. É preferível parar em aeroportos com menos segurança”, diz o relatório da ELI. Essa transferência pode ocorrer de pelo menos duas maneiras: por meio de uma cadeia logística que permite que mercadorias ilegais sejam escondidas em remessas legais, ou por meio de pessoas que carregam presas em suas bagagens de mão e até mesmo em seus corpos.
Com o início da pandemia COVID-19, as restrições de voo restringiram amplamente esta opção. “Mas você precisa entender que essas pessoas são profissionais, elas são muito boas em entender o melhor caminho para evitar verificações de segurança”, diz Crosta. “O coronavírus é apenas mais um problema logístico para eles.”
Ele acrescenta que “eles encontram os espaços com menor resistência. Se precisarem transportar mercadorias da Bolívia para o Peru porque será mais fácil, eles cruzarão a fronteira para fazê-lo”. A ELI também descobriu que alguns traficantes no Brasil transportam seus produtos através dos vizinhos Suriname ou Guiana, onde os controles de exportação são mais fracos.
No caso de peças de jaguares, o contrabando é relativamente fácil devido ao tamanho do contrabando que está sendo transportado. Uma única presa, mesmo quando adornada com ouro para ser vendida como joia, não é maior do que um iPhone e, portanto, cabe facilmente no bolso. “Esse tipo de tráfego feito individualmente é o mais comum”, diz Crosta. Muitos dos que chegam à Bolívia para supostos negócios saem com essas presas como uma “lembrancinha”.
Os embarques a granel saem por contêineres diretamente da Bolívia ou via países vizinhos, segundo o traficante citado no início deste artigo. A ELI encontrou evidências de que esses contrabandistas pagam subornos para garantir que suas remessas cruzem as fronteiras, seja por avião ou por terra. O tráfico é um negócio arriscado e todos os entrevistados que fazem parte da investigação sabem disso. No entanto, também é uma atividade lucrativa: uma presa de jaguar pode valer dez vezes mais quando chega à China.
Interesse mortal no “tigre americano”
Em 2017, uma estação de rádio em Beni divulgou um anúncio oferecendo a compra de presas de “tigre”, em referência ao jaguar. A caça furtiva de tigres na Ásia, inclusive para o mercado da medicina tradicional chinesa, dizimou as populações de Panthera tigris, levando os traficantes a procurar outros grandes felinos como substitutos. Para os praticantes e crentes da MTC, os ossos e as presas do “tigre americano” são considerados ingredientes medicinais potentes, enquanto os órgãos genitais aumentam as proezas sexuais. Nenhuma dessas alegações tem qualquer respaldo científico.
Segundo a ELI, a “necessidade de peças de tigre”, combinada com a possibilidade de substituí-las por peças de jaguares – em um país com grande número de jaguares – e a chegada de investimentos chineses à Bolívia, se uniram para criar uma “perfeita tempestade.” Thaís Morcatty, pesquisadora brasileira da Oxford Brookes University, publicou um estudo no ano passado sobre a relação entre o investimento chinês em projetos de infraestrutura e o tráfico de jaguares. Morcatty observa que esse padrão de procura de substitutos para partes de tigres já foi visto na África, onde as populações de leões foram reduzidas devido a essa demanda.
O relatório da ELI mostra que os projetos de infraestrutura apoiados pela China são uma porta que permite a caça ilegal de animais selvagens. Ele vincula um aumento da caça furtiva na Bolívia desde 2015 a políticas favoráveis para investidores que foram implementadas pelo então presidente Evo Morales.
“Estradas recém-construídas estão abrindo a floresta para caçadores furtivos, enquanto o influxo de trabalhadores, especificamente cidadãos chineses, em infraestrutura ou indústrias de mineração, muitas vezes cria uma nova demanda por carne de animais selvagens”, diz o relatório. Uma dessas estradas é uma rodovia que está sendo construída no meio da Terra Indígena Isiboro Sécure e Parque Nacional (TIPNIS) na Amazônia, estendendo-se aos departamentos de Beni e de Cochabamba. Os jaguares vivem nesta área protegida.
Os agentes secretos da ELI encontraram carne de jaguar à venda em Santa Cruz, em dois restaurantes administrados por cidadãos chineses que ofereciam secretamente vários tipos de carne de animais selvagens. “É uma nova modalidade para as autoridades”, diz Herrera, do Ministério do Meio Ambiente da Bolívia. “Desde abril de 2020, publicamos regulamentos por meio de resoluções ministeriais que proíbem, dentre outros usos, o consumo alimentar e medicinal da fauna silvestre.”
Apesar disso, a carne de jaguar não tem tanto valor para os traficantes quanto as outras partes do animal. “Não é interessante para os traficantes porque não há muito dinheiro e é pontual, às vezes por solicitação”, diz Crosta. “Não encontramos uma relação entre os grupos que traficam presas e ossos com os que comercializam carne.”
Ir atrás do caçador ou do traficante?
Crosta diz que é “muito fácil ir atrás do caçador, que geralmente é local, neste caso, da Bolívia”.
“Mas ele é o elo mais fraco. A caça furtiva existe porque tem um traficante que requisita as presas”, afirma. Ele acrescenta que o foco dos esforços de aplicação da lei deve ser o tráfico, que é a parte da cadeia ainda invisível para as autoridades bolivianas.
Entre 2014 e 2016, as autoridades da Bolívia confiscaram 760 presas de jaguar, correspondendo a quase 200 dos felinos. Durante esse período, o serviço postal da Bolívia, Ecobol, encontrou 337 das presas em 16 pacotes com destino à Ásia. O Ministério do Meio Ambiente confirmou esses números coletados pela Operação Jaguar, um projeto desenvolvido pela IUCN NL juntamente com a Savia na Bolívia, com a ELI liderando as operações de inteligência.
Foram conhecidos 34 casos de tráfico de jaguares, tanto vivos como partes do animal, além de casos em que a caça ilegal ou o contrabando desse felino foram incentivados. Destes 34 casos, houve condenações criminais em apenas cinco. Em dois desses casos, os perpetradores cumprem pena de prisão de até seis anos, pena máxima para este crime na Bolívia.
“Todos os casos existentes até o momento foram investigados porque foram denunciados pelo Ministério do Meio Ambiente”, afirma Herrera. Tanto o meio ambiente quanto os ministérios públicos confirmaram ao Mongabay que, desde janeiro de 2019, não houve novas apreensões de partes de jaguares.
Segundo Herrera, o ministério está convencido de que uma das lacunas do quadro jurídico vigente é a falta de uma “estrutura punitiva moderna” que tenha um efeito dissuasor para esse tipo de crime. “Por isso, um anteprojeto de lei foi elaborado que foi enviado à presidência boliviana”, afirma. O Mongabay informou em agosto passado que a iniciativa buscou a criação de uma Lei de Proteção Animal, a primeira do gênero no país. Uma das mudanças propostas considera o biocida animal, com pena máxima prescrita de 15 anos de prisão.
No entanto, essa proposta foi rejeitada por enquanto. “Disseram-nos que o problema deveria ser analisado e revisado por mais [instituições]”, diz Herrera. “Agora estamos entrando em um novo governo e esperamos que essa iniciativa seja retomada.”
Ángela Núñez, bióloga que estuda o tráfico com a Operação Jaguar, diz que é preciso trabalhar a continuidade política para esse tipo de estratégia. “A crise política na Bolívia está afetando o trabalho de proteção de jaguares”, diz ela.
Vania Arroyo, diretora de crimes ambientais da Procuradoria-Geral da República, concorda que as discussões sobre o projeto de lei devem ser retomadas. “Nesse ínterim, queremos sugerir [considerar] circunstâncias agravantes [nas acusações]”, diz ela. “Por exemplo, se o animal é comercializado, mas também foi morto ou decapitado, o crime deveria ter mais tempo na prisão. Por enquanto, a sanção é mínima, o que é uma piada.”
O escritório de Arroyo é relativamente novo. “Foi criado em meados de 2019 e por enquanto temos 11 promotores especializados que também fiscalizam casos de delinquência juvenil e outros 100 promotores provinciais que também devem apoiar as investigações”, diz ela. Os problemas surgem quando esses promotores não recebem ou aceitam as queixas. “Às vezes, eles os rejeitam porque não têm treinamento suficiente para aceitar esses casos ambientais. Estamos recebendo conselhos do Fundo Internacional para o Bem-Estar Animal [IFAW] para desenvolver essas habilidades”.
A escassez de ações judiciais faz com que as pessoas como Núñez, que estuda esse comércio, com pouco para conseguir prosseguir. “Ainda não conseguimos realizar investigações mais aprofundadas sobre os casos registrados de tráfico de jaguares”, diz ela.
Ela diz que os presos são apenas as pessoas flagradas transportando as presas ou as oferecendo para venda, enquanto o resto dos jogadores da rede permanecem desconhecidos – de onde vêm e a quem eles respondem. “Para descobrir essa rede de tráfico, precisamos treinar promotores, juízes e policiais”, diz Núñez. “Precisamos entender a magnitude dessa ameaça.”
Mesmo nos casos em que partes do jaguar foram interceptadas, não há indicação de que a justiça está sendo buscada. “Essas 300 presas apreendidas em 16 pacotes pelos correios bolivianos não têm casos abertos e, o que é pior, não há informações oficiais sobre o paradeiro dessas peças”, diz o relatório da ELI. O Ministério Público confirmou isso.
Apesar desta perspectiva sombria para o jaguar na Bolívia, a ELI e o Plano de Ação para a Conservação de Jaguares – um esforço conjunto entre entidades públicas e privadas para estabelecer um roteiro para a proteção da espécie no país – emitiram recomendações de ações que podem ser tomadas. Isso inclui melhorar a coordenação entre a polícia, os governos autônomos departamentais e municipais, a estância aduaneira e o ministério do ambiente. Assim, dizem eles, todos terão um conhecimento claro de suas funções.
“Também é necessário buscar a colaboração com as autoridades chinesas em La Paz e envolver as comunidades e empresas chinesas na Bolívia para trabalharem juntas contra o tráfico”, diz o relatório da ELI. Com um novo governo liderado por Luis Arce, do partido Movimento ao Socialismo (MAS) de Morales, o caminho ambiental boliviano está repleto de incertezas.
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