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Vencedor do Lush Prize enfatiza que testes em animais não trazem resultados confiáveis

20 de maio de 2019
12 min. de leitura
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Por David Arioch

Renato com a professora Marize Valadares no dia da premiação do Lush Prize: “Foi com ela que adentrei ao conhecimento de métodos inovadores sem o uso de animais e que mimetizam melhor a fisiologia humana” (Foto: Divulgação)

Vencedor do prêmio internacional Lush Prize, que premia as melhores iniciativas de substituição aos testes em animais em pesquisas toxicológicas, o pesquisador Renato Ivan de Ávila nasceu em Goiânia e tem a Universidade Federal de Goiás (UFG) como norte da sua formação profissional.

Após a graduação em farmácia, se especializou em farmacologia clínica, concluiu mestrado em ciências farmacêuticas e doutorado em ciências da saúde – parte conduzido na Lund University, da Suécia.

Mas foi antes, em 2008, que despertou o interesse pela pesquisa científica, quando foi introduzido a um projeto de iniciação científica. Ávila conta que a responsável foi a professora Marize Campos Valadares, que o orientou durante a iniciação científica até a finalização do doutorado.

“Foi com ela que adentrei ao conhecimento de métodos inovadores sem o uso de animais e que mimetizam melhor a fisiologia humana”, revela.

Após a graduação, Renato trabalhou no Laboratório Central de Saúde Pública do Estado de Goiás (LACEN-GO), onde adquiriu experiência como professor da Residência Multiprofissional da Secretaria da Saúde de Goiás.

“Ano passado, fui professor temporário de toxicologia para alunos de graduação em farmácia na UFG e também em disciplina de biossegurança para diferentes cursos – farmácia, direito, engenharias, medicina, biomedicina, veterinária etc”, informa.

Hoje, considerando a atual conjuntura política, Renato de Ávila não vê boas oportunidades para continuar no Brasil. Por isso tomou a decisão de trabalhar, a partir de junho, na empresa sueca de biotecnologia SenzaGen, em parceria com a Lund University.

Em entrevista ao VEGAZETA, o pesquisador fala sobre o interesse em buscar alternativas aos testes em animais, premiações e o futuro da pesquisa toxicológica, entre outros assuntos. Confira:

Como surgiu o interesse por desenvolver uma alternativa aos testes em animais? Trabalho que você já tem desenvolvido há dez anos.

Nesses 10 anos, a minha área de pesquisa é a Toxicologia, uma ciência que procura investigar os efeitos danosos que substâncias químicas ou misturas possam causar no organismo humano. Apesar de ser uma área de estudo antiga, veio de um grupo de pesquisa que reconhece que a Toxicologia, assim como outras partes da ciência, ainda usa protocolos obsoletos envolvendo animais.

São obsoletos, uma vez que causam dor e sofrimento desnecessário aos animais e são modelos que falham, ou seja, não trazem resultados confiáveis. Como dizem pesquisadores de referência na nossa área, “o homem não é um camundongo de 70 kg” e, por isso, há diferenças entre o organismo do homem e de outros animais.

Nessa perspectiva, meu desafio é desenvolver modelos inovadores, sem animais, que imitem melhor o organismo humano na busca de respostas sobre o que pode ser tóxico ou não, seja um medicamento, um cosmético ou um agrotóxico, por exemplo.

 Então o projeto é bem mais amplo do que criar uma alternativa para a substituição dos testes sem animais na indústria cosmética?

É mais amplo. Meu projeto é voltado para investigar se alguma substância ou produto pode ocasionar alergias severas quando em contato com a pele (esse evento é clinicamente conhecido como dermatites alérgicas de contato).

Nesse sentido, toda substância ou produto que, de forma intencional (ex.: cosmético) ou não (ex.: agrotóxico), possa entrar em contato com a pele deve ter a resposta para a seguinte pergunta: tem potencial ou não para promover alergias na pele? Essa é uma pergunta que fabricantes de cosméticos, medicamentos, agrotóxicos, dentre outros, devem investigar para solicitar a venda do seu produto em algum país.

Com o meu trabalho, propus uma estratégia eficaz, sustentável e livre de animais de laboratório e até com capacidade preditiva superior aos modelos animais historicamente usados para avaliar o potencial alergênico de produtos. No Brasil, é uma área de extrema carência e por isso necessitamos de autonomia tecnológica.

Para isso, é fundamental investimento em Pesquisa, Inovação e Desenvolvimento (PD&I) para adequar os modelos inovadores atuais às nossas necessidades regulatórias e científicas. Com isso, meu projeto veio a contribuir para o fortalecimento das bases científicas e tecnológicas para a implementação e desenvolvimento de experimentação sustentável in vitro (sem animais de laboratório) no Brasil.

Os modelos historicamente usados para a avaliação toxicológica de alergenicidade envolvem o uso de camundongos e porquinhos-da-índia. Para se ter uma ideia, a literatura mostra que o desempenho desses ensaios animais em relação aos dados humanos é de 72%.

Meus resultados, usando técnicas 100% livre de animais de laboratório, alcançaram um desempenho superior a 90% e, a depender do ensaio, um valor máximo de 100%. Assim, evidencia-se a superioridade preditiva das tecnologias in vitro quando comparadas com os protocolos que usam animais de laboratório.

 Vocês levaram quanto tempo para desenvolver uma estratégia de testes, baseado no mapa molecular do processo alérgico, capaz de determinar se uma substância causa ou não alergia? E como esse trabalho foi desenvolvido?

Essa busca foi longa, durante os quatro anos do meu doutorado. O mapa molecular dos principais eventos celulares e bioquímicos do processo alérgico foi publicado pela Organisation for the Economic Co-operation and Development (OECD) em 2012, portanto algo bem recente. Em cima desse conhecimento, estabelecemos métodos inovadores que avaliam se um produto ou substância tem a capacidade de reagir com as proteínas da pele e promover alterações nas células da pele que culminem para o desenvolvimento de alergias.

Assim, utilizamos proteínas sintéticas e células humanas cultivadas em laboratório, entre elas queratinócitos, uma das células mais presentes na pele, e células dendríticas que são responsáveis por processar e identificar substâncias alergênicas no organismo.

Uma parte das minhas análises foi conduzida na Lund University, sob a orientação da professora Malin Lindstedt. Em seu grupo de pesquisa, tive a oportunidade de ser treinado em uma tecnologia inovadora, chamada GARD (Genomic Allergen Rapid Detection), baseada no conhecimento dos 200 genes humanos que são alterados por substâncias alergênicas.

Esse ensaio foi desenvolvido pelo grupo da professora Malin e hoje é um produto comercial disponível para indústrias e pesquisas que adotam práticas tecnológicas inovadoras livres do sofrimento animal.

De onde veio o investimento para a pesquisa e quantas pessoas participaram do projeto?

Contou com investimento de diferentes instituições e entidades. No Brasil, contou com o apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa (FUNAPE) da UFG, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG). No nível internacional, o prêmio “Lush Prize” também foi investido no projeto, juntamente com o apoio da Swedish Foundation for Strategic Research e da Faculdade de Engenharia (LTH) da Lund University.

Contei com a participação de uma equipe multiprofissional, de diferentes backgrounds, entre farmacêuticos, químicos, odontólogos e engenheiros, entre eles: Danillo F. M. C. Veloso, Gabriel C. Teixeira, Thaisângela L. Rodrigues, Tim Lindberg, Malin Lindstedt, Simone G. Fonseca, Eliana M. Lima, Marize C. Valadares.

Você foi bolsista do Ciência Sem Fronteiras, certo? Seria possível desenvolver esse trabalho sem o programa?

Realizei parte do meu doutorado (nove meses) na Lund University com investimento do Ciência Sem Fronteira. Foi uma experiência muito relevante, tanto a nível profissional como pessoal. Pude ser treinado em técnicas inovadoras e tive contato com importantes pesquisadores da minha área.

Pude desenvolver parte da minha pesquisa lá, aumentando o impacto do meu trabalho. Aprendi bastante e pude repassar o conhecimento para o meu grupo de pesquisa e alunos. Morar em outro país também me permitiu crescimento pessoal e também tive uma troca cultural bastante interessante, uma vez que a cidade onde morei era uma cidade universitária.

Além de ser uma das 100 melhores universidades do mundo, a Lund University tem um processo de internacionalização do ensino e pesquisa muito interessante, e recebi anualmente alunos de todos os lugares do mundo. Então foi uma troca muito rica de experiências e conhecimentos.

Como você analisa a atual situação do Brasil em relação a cortes de investimentos em pesquisa científica e educação?

Pra mim, é muito frustrante o cenário atual. Passamos por cortes nos últimos quatro anos, mas nada tão preocupante havia sido visto como agora. Para se ter uma ideia, o atual presidente havia prometido para 2019 o menor orçamento dos últimos 14 anos para o MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações).

Em março desse ano, propôs o bloqueio de 42% desse orçamento – o que já era pouco, tornou-se escasso. Sem falar no bloqueio de investimentos impostos ao MEC. As consequências disso são diversas, como atraso tecnológico e perda dos jovens pesquisadores brasileiros para outras nações.

Precisamos de prioridades para o Brasil. Nossos governantes têm que entender que não há desenvolvimento econômico sustentável se não há educação de boa qualidade. Não há possibilidades de um país alcançar autonomia tecnológica se não há investimento em PD&I. Essa receita foi – e ainda é – adotada por diversas potências tecnológicas mundiais, entre elas EUA, Suécia, Alemanha, Coreia do Sul, Japão etc.

Renato, o prêmio de 10 mil libras do Lush Prize foi de grande ajuda no projeto?

O meu projeto já estava sendo desenvolvido quando ganhei o prêmio. Contudo, estávamos com a possibilidade de o projeto não ser finalizado pela falta de investimento. O Lush Prize permitiu que eu finalizasse minha pesquisa.

O que é preciso agora para ampliar a penetração dessa alternativa aos testes em animais no meio comercial?

O projeto foi realizado com técnicas in vitro, sendo que algumas já estão disponíveis em nível comercial. Contudo, tem sido estabelecido que apenas uma técnica in vitro não pode substituir o modelo animal – mas a integração de duas ou mais técnicas sim.

Nesse sentido, a inovação do trabalho foi investigar a forma em integrar diferentes técnicas e determinar sua aplicabilidade para produtos acabados, ou seja, para aquele cosmético ou medicamento comprado pelo consumidor. Assim, conseguimos identificar quais técnicas funcionam melhor, que são superiores aos testes animais, quando associadas em uma estratégia de testes in vitro.

Associado a isso, precisamos que a legislação acompanhe esse ganho tecnológico. Precisamos que as agências regulatórias, como a Anvisa, aceitem ensaios in vitro para avaliação toxicológica de produtos e substâncias químicas. Isso tem sido feito recentemente no Brasil, quando o Concea [Conselho Nacional de Experimentação Animal] reconheceu em 2014 a aplicabilidade dos métodos alternativos à experimentação animal. A partir de então, a Anvisa também passou a reconhecer esse ganho em 2015.

Além disso, precisam-se ter recursos humanos capacitados nas práticas inovadoras livres de animais. Nesse sentido, o grupo de pesquisa por meio do qual desenvolvi toda minha formação, o Laboratório de Ensino e Pesquisa em Toxicologia In Vitro (Tox In/UFG), coordenado pela professora Marize, faz treinamentos periódicos para alunos, pesquisadores, profissionais da indústria e da área regulatória. Com esse trabalho importante na disseminação de métodos livres de animais no Brasil, nosso grupo ganhou o segundo Lush Prize, dessa vez na categoria Training, ano passado.

Você recebeu dois prêmios internacionais como jovem pesquisador. O projeto foi o mesmo ou tem alguma diferença?

Para a premiação, submeti a primeira parte do meu trabalho, realizado totalmente no Brasil, aqui na UFG. Nessa primeira parte, realizei melhoramentos de uma técnica existente. Esses refinamentos permitiram que a técnica se tornasse mais barata, com o uso de menos solventes orgânicos (portanto, uma técnica ambientalmente correta) e com aplicabilidade para identificar substâncias que se tornam alergênicas quando expostas a luz solar (o que é muito importante para países de alta incidência solar como o Brasil). E tudo isso sem o uso de animais. Esses dados foram publicados em um periódico muito importante da minha área [https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0887233317300875?via%3Dihub].

O investimento recebido com o Lush Prize foi fundamental para a finalização da segunda parte do projeto. Essa parte envolveu um trabalho mais desafiador do ponto de vista técnico-científico, em que estabelecemos uma estratégia integrada de testes para avaliação do potencial alergênico de “misturas da vida real” (ou seja, de produtos acabados na forma que chega ao consumidor, como o cosmético e o medicamento disponível na prateleira).

Além disso, esse trabalho teve um impacto na necessidade de estabelecer políticas públicas de saúde que garantam a qualidade de produtos cosméticos: detectamos casos de adulteração e falsificação de tinturas naturais de cabelo contendo henna com uma substância sintética altamente alergênica e que estudos mostram um potencial de promover câncer, chamada para-fenilenodiamina (PPD).

Nossas análises utilizando a estratégia de ensaios mostraram que esses produtos adulterados apresentam um risco aumentado para o consumidor, uma vez que apresentam o potencial maior em desencadear dermatites alérgicas. Os dados dessa pesquisa foram recentemente publicados em um jornal de alto impacto [https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/cod.13294].

 Como você analisa a realidade nacional e internacional de pesquisas nessa área? Acredita o banimento dos testes em animais no mundo pode ser uma realidade próxima?

A legislação brasileira a respeito de métodos substitutivos à experimentação animal é recente. Somente em 2008 foi aprovada a Lei Arouca que legisla sobre a experimentação com animais e incentiva a adoção de métodos substitutivos aos animais de laboratório.

Em 2014, tivemos um marco regulatório com o reconhecimento de métodos alternativos pelo Concea e, mais tarde, pela Anvisa. Além disso, os grupos de pesquisa e indústrias vêm se estruturando para se adequarem a essa necessidade. Outros países, como aqueles da União Europeia, já estão bem à frente e inclusive são exemplos para o Brasil.

Apesar de ser um movimento recente no Brasil, temos obtidos ganhos de forma bem progressista. Por exemplo, conforme estabelecido na Resolução do Concea nº 18/2014, em setembro de 2019, estabelecerá o prazo final para que o Brasil faça a substituição dos tradicionais métodos animais de avaliação de alguns parâmetros toxicológicos por métodos inovadores.

Por exemplo, o tradicional ensaio de avaliação de irritação ocular, chamado Teste de Draize, não será mais permitido no Brasil para qualquer produto, seja cosmético, medicamento ou agrotóxico. O Teste de Draize é um exemplo de protocolo animal obsoleto: é um teste que foi desenvolvido por volta de 1944 e que consiste em aplicar um produto no olho de coelhos vivos e verificar alterações oculares indicativas de irritação.

Apesar de ser um método antigo, nunca passou por acreditação científica, e mesmo assim vem sendo historicamente aceito pelas agências regulatórias do mundo todo. Hoje, como temos métodos superiores livres de dor e sofrimento animal e que imitam melhor as condições fisiológicas do organismo humano, esse ensaio finalmente poderá ser banido no Brasil para qualquer tipo de produto – e não apenas para cosméticos como ocorre na União Europeia, por exemplo.

Então a sociedade está caminhando para práticas inovadoras e humanizadas. E isso tem sido fruto dos investimentos realizados que permitem que a Ciência avance – e a sociedade também.

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