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O normal, o avesso e o avesso do avesso

24 de novembro de 2017
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Este é um depoimento pessoal. Por ser assim, narra uma história que só tem como intuito inspirar e levar a pensar, nunca de convencer.
Aqueles que convivem comigo sabem que há onze anos iniciei um processo de redução de alimentos de origem animal. Todo esse período durou, aproximadamente, três anos. Primeiro foi a carne vermelha, depois frango, peixe e, por fim, leite, ovos e derivados. O início foi parecido com o ato de riscar fósforo. O primeiro apaga diante do menor sinal de vento; no segundo, você faz uma proteção, mas dura pouco e, no terceiro, a chama permanece. A primeira chama que iluminou um fragmento de uma cena, outrora oculta aos meus olhos, era de uma fazenda industrial e com todo o processo envolvendo, desde a inseminação artificial, nascimento, “vida” até a morte dos animais nomeados por nós como “de abate”. Enxerguei os olhos de espanto e a tentativa inútil do animal de lutar por sua vida. Seus berros não são ouvidos como berros. Seus movimentos de fugir da ameaça, do desconforto ou da dor não são vistos como o desejo de lutar por sua vida. Não precisei ver muito mais. Tive ainda a coragem de ler vários livros e textos sobre o assunto. Ao conhecer os métodos utilizados em cada ramo dessa indústria, fui profundamente confrontada com tudo aquilo que experimentei em mais de 40 anos de cultura, costume e tradição, familiar e da sociedade.
Oscilei algumas vezes e recomeçava na refeição seguinte. Com o passar do tempo sentia que a motivação interna era muito maior que qualquer prato tentador à minha frente. A relação com o alimento foi se alterando, lentamente. A forma de ver o mundo também. Passei a enxergar os animais numa perspectiva a que jamais havia me atentado. Aquilo que antes era comida, normal, portanto, passou a ser alguém que um dia foi uma vida, que só viveu para que eu pudesse, naquele instante, comê-la. Na maioria das vezes, sem nenhuma necessidade. Saltava aos meus olhos os excessos. Em uma só refeição, três a quatro opções “de carne”. Comecei a enxergar o avesso.
Lá, nesses idos de 2006, não havia opções nas prateleiras dos mercados. Como desde criança aprendi a cozinhar, iniciei um processo de testar receitas e de fazer trocas de ingredientes. Reeduquei meu paladar. Alarguei meu cardápio ao provar uma lista enorme de alimentos de origem vegetal que não fazia parte do meu cardápio. Na rua, nos restaurantes, no ambiente de trabalho, raramente havia alguma opção. Sempre comia antes de sair de casa ou tinha um kit de sobrevivência na bolsa.
Uma coisa aconteceu. O avesso começou a incomodar o normal. O fato de não ter carne no meu prato suscitava perguntas: Você não come carne? Por quê? Como você faz com a proteína? Nossa! Isso é muito radical. Você come o que então? Respondi a essas perguntas centenas de vezes e também escutei as piadinhas. Incrível, mas sem dizer uma só palavra, passei a me sentir uma subversiva, contrariando a ordem natural das coisas. Minha conduta “avessa” não era bem-vinda socialmente, era, sim, uma ameaça à conduta “normal”.
Até então a motivação primeira, aquela que me nutria de coragem e alimentava minha disposição era saber que, se dependesse só de mim, nenhum animal iria morrer ou ser escravizado. Entendi, pelas leituras, que não precisava e que eles não mereciam.
Duas outras questões secundárias, porém complementares, surgiram. Primeira, fui obrigada a estudar e entender sobre os nutrientes necessários para minha saúde. Passei a sentir disposição e minha resistência física melhorou consideravelmente. A segunda questão foi a ambiental. Como sempre me preocupei com o consumismo, com a produção e descarte do meu resíduo, ou com a economia de água, papel, luz etc., foi fácil chegar e acessar o volume absurdo de pesquisas e relatórios que relacionam as emissões de gases de efeito estufa, desmatamento, contaminação dos lençóis freáticos, desertificação dos solos, desvio de grãos para consumo de animais, emissão de gás metano, consumo absurdo de água e uma lista infindável de impactos ambientais provocados pela indústria da carne.
Como alguém que anuncia o “discurso” ambiental/ecológico/sustentável, estava convencida de que seria bem mais coerente de minha parte o “curso”, doravante, adotado. Nenhuma ação ou atitude pessoal tem mais impacto como forma de mitigar os efeitos da crise ambiental do que a redução do rebanho mundial, e isto só irá acontecer se consumidores enviarem um recado para o Mercado, de que estamos com disposição para diminuir.
Por inúmeras vezes participei de jantares, coquetéis e cafés com dezenas de opções. Diante de tanta fartura, ficava sem nenhuma opção. Inventaram até queijo ralado na alface ou batata frita! Essas ocasiões reforçavam a minha percepção da imposição a que as pessoas estavam submetidas sem se darem conta.
Certa vez, em um encontro de trabalho, todas as opções servidas eram sem ingredientes de origem animal. Detalhe, não fui eu que solicitei. O retorno nada positivo foi imediato. Consideraram a imposição de uma “ideologia”. Ouvi aquilo surpresa. Que tragédia participar, uma única vez, de um simples lanche, sem a presença do frango, queijo, ovo ou da carne. Logo me veio à mente Caetano Veloso, “porque és o avesso do avesso do avesso”!
Como disse em um texto anterior, as ideias que mais nos desafiam e interpelam, são aquelas com potencial de nos fazer crescer. Eliminá-las, pelo simples desprezo, empobrece a vida, ao mesmo tempo que sinaliza para a nossa própria fraqueza. Sendo assim, agradeço àqueles que manifestaram o seu estranhamento e solicitaram a volta do “normal”. O meu espanto me levou a escrever. A eles, dedico este texto.

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