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O veganismo capitalista está com os dias contados

14 de setembro de 2015
11 min. de leitura
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No tempo que morei nos Estados Unidos, tive duas desilusões com o veganismo. Por pura ingenuidade, talvez, mas desilusões mesmo assim. Primeiro, eu pensei que o movimento de direitos animais tivesse uma forte motivação pacifista. Não é verdade. Ao contrário, a maioria dos vegan@s que conheci lá apoiava, em alguma medida, o esforço de guerra do Tio Sam. E não era uma adoração simples a uma política imperialista do Estado, ou uma veneração cega dos valores da bandeira estadunidense. O marketing de guerra dos norte-americanos é bem mais sofisticado que isso. Eles fazem parecer que a guerra é a vontade, o destino, de um(a) familiar, espos@, parente, amig@, que irá fazer um sacrifício para defender seus filhos, pais, vizinhos e tudo o que eles acreditam. As pessoas que perderam entes queridos se apegam a um orgulho emotivo de que aquela pessoa morreu pelo melhor sonho possível. E não são pessoas estúpidas ou patologicamente ingênuas, mas que aprenderam desde pequenas a se orgulhar de coisas tão abstratas e ao mesmo tempo absolutas. Como estrangeiro, criticar o esforço de guerra Bush/Obama era o mesmo que dar um tapa na cara das pessoas. Muitas me perguntavam: “Por quem seu país está lutando? Por quem seus parentes e amigos estão morrendo? A ‘América’ está botando o dela na linha pela sua liberdade também, seu mal agradecido!”. Mesmo se as pessoas fossem contra a guerra, falar mal das tropas era pessoal. Obviamente, não eram assim todas as pessoas, mas uma maioria, até entre @s mais politizad@s.
Outra coisa que me chocou no não-pacifismo dos vegan@s lá foi a simpatia ao belicismo. Muitos dos militantes, mas muitos mesmo, têm armas tatuadas pelo corpo ou possuem armas de fogo. Em especial aquelas pistolas de tambor, estilo 38. Eu sinceramente não conseguia entender ao certo a lógica que coloca em coerência os aparelhos que mais matam animais selvagens neste planeta e o veganismo. Seja em Los Angeles ou no velho oeste, em níveis bastante diferentes, é verdade, existe uma veneração ao que uma arma representa. No tempos de colonizadores ingleses, as armas dos cidadãos estadunidenses foram confiscadas para evitar a insurgência americana e uma subsequente independência. O efeito foi contrário. A proibição de armas de fogo só incitou o povo de lá a buscar sua independência. Já no contexto do país livre, quem era proibido de se armar era a população negra do sul. A guerra dos abolicionistas do norte, que armou sua população negra e a colocou na linha de frente, também foi vista como uma ato libertário. Por estas razões, as armas se tornaram símbolo de liberdade por lá. É plausível que o estadunidense veja a arma como um direito histórico e um símbolo da liberdade individual. Mas hoje, isto tudo é uma tradição que é reproduzida pela propaganda militarista dos EUA, que cria no jovem a expectativa de um dia ser soldado. Eu, ingenuamente, esperava valores diferentes vindos dos vegan@s de lá. Não tem como culpa-l@s, pois as armas são um símbolo muito forte para eles. Contudo, não deixei de me chocar com o proselitismo pró-armas de alguns. Mesmo com pesquisas mostrando o contrário, muit@s se sentem mais segur@s e protegid@s portanto armas de fogo.
A segunda coisa que me impressionou é como o veganismo está sendo cooptado rapidamente pelo capitalismo. As pequenas lojas de ativistas que se espalharam pelas grandes cidades estadunidenses no final dos anos noventa e primeira década dos anos dois mil estão sendo já suprimidas pelas redes de fast-food, supermercados “naturais” e “saudáveis”, e empresas de “enlatados” veganos. Bill Gates, Bill Clinton e outros ricaços investem em maioneses, carnes processadas, queijos empacotados e suplementos. O crescimento desta iniciativa é tamanho que a Unilever processou a vegana Hampton Creek Foods, por fazer um produto de gosto análogo sem ovo. Por um lado, isto é ótimo. Prova que a cultura do veganismo cresce alucinadamente no dito “Primeiro Mundo”. Mas por outro lado, é uma tendência um tanto perigosa. Quando conversei com Heiko, um dos organizadores da International Animal Rights Conference em Luxemburgo, ele me falou que o crescimento do veganismo na Alemanha é, de fato, enorme, principalmente nos maiores centros urbanos. Contudo, a capitalização deste crescimento, segundo ele, está prejudicando o movimento. Várias pessoas que tinham pequenos negócios veganos foram esmagadas pelo Veganz, uma rede de mercados veganos que está presente em várias cidades do país. A marca, que já se tornou conhecida, instala-se em bairros que possuem maior densidade de consumidores e lojas veganas e vira referência. As lojas dos ativistas, então, não conseguem resistir ao assédio e fecham.
A reação dos vegan@s a isso não é de protesto. Ao contrário, é de euforia. Uma vez fui a uma conferência em Berkley na Califórnia em que se apresentaram alguns dos principais nomes do veganismo hoje. Karen Davis, a presidente do United Poultry Concerns; Lauren Ornelas, criadora do Food Empowerment Project; Colleen Patrick-Goudreau, confeiteira famosa por reformular e popularizar o desafio vegano, no qual propõe às pessoas tentarem a dieta sem abuso animal por uma semana ou trinta dias (várias ONGs brasileiras estão testando a fórmula que ela consagrou); entre muit@s outr@s. As palestras foram ótimas, mas o que chamou mais atenção da platéia foi Ethan Brown. Ele é o criador da empresa Beyond Meat. Falou que a carne é um conjunto de reações químicas que podem ser simuladas e que estava a pouco mais de uma década de conseguir reproduzir, à partir da proteína da ervilha, a fibra e o gosto da carne. Mesmo após assistir outras palestras, que do ponto de vista ético e da militância eram muito mais relevantes, as pessoas entraram em êxtase mesmo com o empresário. Esta era uma conferência de, praticamente, só mulheres palestrantes e um dos únicos homens, o mais capitalistas de todos, foi quem o pessoal parou para escutar. Vegan@s vêem com bons olhos este assédio da indústria. A dieta vegana é algo simples e consolidado tanto nos EUA, como na UE e no Brasil. Todos os nutrientes necessário para uma dieta balanceada estão disponíveis e com fácil acesso nestes lugares. Mas isto não basta. As pessoas precisam igualar seus hábitos aos modelos de consumo predatórios que praticavam anteriormente. Eu digo isso porque também tenho este fetiche. Quando descubro novos produtos industrializados (em especial sorvete), meu Eu consumista fica cego de gula.
Talvez possa-se argumentar que aqui no Brasil as pessoas não gostam de armas e que a gente ainda não possui barões capitalistas do veganismo, como nos EUA ou na Alemanha. Realmente, nós não temos uma cultura de caça ou de guerra como nos EUA. No entanto, isto não significa que somos um povo pacifista. Vivemos em um país infestado de homofobia e crimes de ódio. Um dia, na página de facebook da ANDA, havia um vídeo de uns chineses torturando e matando um polvo para comer. Era horrível, mas a reação das pessoas não foi menos apavorante. Queriam matar todos os chineses, torturá-los bem devagar, os chamaram de raça nojenta e coisas do tipo. Confesso que meu estômago embrulhou. Lembrou um pouco a inquisição. “Nós amamos tanto os animais, por isso apoiamos a carnificina de absolutamente todos os chineses”. Em geral, o movimento de direitos animais brasileiro, e mesmo o vegan@, não é pacifista. Já presenciei apologia à todo tipo de violência em nosso movimento, ao longo dos quase dez anos que estou nele, e posso dizer: não existe movimento social mais misógino, homofóbico, racista, classista e por aí vai. Não é todo o movimento, obviamente, mas uma parte do pessoal. Isso não quer dizer, no entanto, que o movimento vegano é violento e reacionário. Esta não é sua vocação. Mas a ética vegana não é uma moralidade pura e pode se manifestar nas mais variadas, contraditórias e agressivas formas.
O ideal de consumo do veganismo brasileiro também não está tão distante dos estadunidenses, por mais que a indústria aqui também não seja tão desenvolvida. O veganismo hoje, no Brasil, é um movimento abraçado pela classe média e alta. Pelo menos a maioria de suas lideranças preenchem essa descrição. São pessoas que cresceram acostumadas com a comida da Vó, mas também nas sorveterias, confeitarias, supermercados e fast-foods. Eu mesmo comi muita carne e leite processados antes de virar vegano. Assim como muitos, depois que virei pro lado dos vegetais, senti falta da maioria das porcarias que comia antes. Durante os últimos anos fui o maior vegan de supermercado. É salsicha da marca tal, hamburger tal, sorvete tal, e por aí vai. Somente depois de morar nos Estados Unidos e ver o consumismo extremo que existe lá, comecei a consumir mais vegetais frescos e parei de frequentar tanto a prateleira dos processados. Nada contra as confeitarias, hamburguerias e sorveterias dos ativistas por aí; desde que elas conservem seus ideais éticos e não criem uma cultura de junk food que permita que os gigantes do varejo esvaziem o movimento.
A verdade é que capitalismo e veganismo não combinam. Estava conversando com minha amiga Bárbara Bastos, que está fazendo doutorado sobre a teoria do decrescimento. É uma escola revolucionária, que foi abraçada por vários autores nos anos 1990 e 2000, dos quais o mais notório é o francês Serge Latouche¹. Ela defende que os recursos neste planeta são limitados, então não faz sentido encarar o crescimento desenfreado como algo bom e positivo para a economia global. O capitalismo lida com o crescimento como se ele fosse ilimitado e viável sempre, sob qualquer circunstância. A falta de crescimento nesta cultura é sinônimo de incompetência ou falta de trabalho. A verdade é que o planeta já não consegue conviver com a expansão econômica humana a um tempo. E quer símbolo melhor da inconsequência do capitalismo que a agricultura animal? O sociólogo marxista James O’Connor descreveu duas contradições básicas que tornam o sistema capitalista auto-destrutivo. Em primeiro lugar, ele não possui um ponto de estabilidade como outros modelos de produção; sempre visa a expansão e o crescimento. Em segundo lugar, ele deteriora suas próprias condições de produção, pois trabalha o crescimento a curto-prazo, sem preservar a saúde de sua força de trabalho, população e meio-ambiente². Quer símbolo maior destes dois problemas que a carne? Jeremy Rifkin, famoso economista e teórico social, escreveu um livro no qual argumenta que o consumo de carne é o principal símbolo destas contradições. A carne foi o primeiro produto que se caracterizou verdadeiramente como bem de consumo; é a base do capitalismo. Até o desenvolvimento da domesticação sistemática de animais, os bens agrícolas eram produzidos de maneira local e endêmica. O gado aumentou a força produtiva de aragem, plantio e colheita, otimizou o transporte humano e viabilizou o comércio de exportação entre cidades próximas. Além da tração, os animais explorados caracterizaram, em si, o primeiro bem de consumo móvel da história. Era uma carga de grande valor intrínseco que podia se deslocar de um ponto ao outro. Os primeiros capitalistas, que começaram a acumular riquezas de maneira desproporcional e se apropriar da força de trabalho dos mais pobres, eram justamente os proprietários de animais domesticados³.
O capitalismo foi construído sobre a escravidão de animais e sobre ela hoje ainda se mantém. Boa parte dos insumos industriais trazem algum traço de exploração animal, seja em testes de laboratório, ingredientes mascarados, no transporte ou no cultivo. Por mais que pensemos que algo que vem em uma caixinha é vegano, não há como saber com certeza, se considerarmos toda a cadeia produtiva envolvida. A comodidade do capitalismo mascara a complexidade de seus processos. E não são só não-humanos que se envolvem nesta teia de exploração animal. Lá estão também os seres humanos que foram escravizados ou mesmo explorados através da história para que outros acumulassem riquezas. Até hoje o dia-a-dia dos abatedouros é extremamente cruel com os funcionários de sua cadeia produtiva.
Padrões de consumo elevados, geração de resíduos descartáveis, exploração do trabalho em países/regiões desfavorecidas, além do transporte de bens por longas distâncias não combinam com o veganismo. Os animais sempre sofrem com o impacto destes hábitos, que destroem ecossistemas, poluem as águas e mascaram o sofrimento animal em embalagens coloridas. O veganismo é justamente a superação do fetiche confortável por bens de consumo em prol do fim da exploração de não-humanos. Capitalismo e veganismo são contraditórios em termos. O veganismo implica diretamente em decrescimento: diminuição do impacto ambiental e da quantidade de insumos para a produção de alimentos. O capitalismo é baseado na competição e no crescimento. Não há conciliação possível entre o atual sistema e o veganismo. A única saída é uma mudança radical, uma revolução. O capitalismo é o produto máximo da exploração animal, e a exploração animal, nos níveis inacreditáveis que atingiu hoje em dia, é um produto do capitalismo. Eventualmente teremos que escolher: ou um ou outro.
Referências
¹Latouche, Serge. Pequeno tratado do decrescimento sereno. Martins Fontes. 2009.
²O’Connor, James. Is sustainable capitalism possible. In: Is capitalism sustainable? Political economy and the politics of ecology. The Guilford press, 1994.
³Rifkin, Jeremy. Beyond Beef: the rise and fall of cattle culture. Plume, 1993.

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