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A confusa e autofágica consideração moral de vegans anti-humanistas

17 de agosto de 2015
12 min. de leitura
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Temos percebido o crescimento da visibilidade de pessoas que se dizem veganas mas ostentam um barulhento anti-humanismo, sendo direitistas reacionárias ou misantropas assumidas. Sua postura moral entra em gritante contradição com os próprios Direitos Animais, mas não parecem se importar com isso. Perguntamos a nós mesmos quando nos deparamos com seus discursos: quais são, afinal de contas, os parâmetros éticos que as fazem excluir os seres humanos – ou uma enorme parcela deles – de sua consideração moral para com seres sencientes?
A princípio, é bem evidente, senão óbvio, que seus critérios de seleção de quem respeitar e quem desprezar e/ou odiar são muito confusos. E quando fazemos uma análise mais apurada, percebemos o quanto são contraditórios e bastante falaciosos, tanto quanto o especismo que essas mesmas pessoas dizem repudiar.
Questionamo-nos, quando pensamos nisso:
 
Quais são os parâmetros morais seguidos por eles ao alegadamente defenderem os Direitos Animais?
Quando ouvimos esses vegans dizerem que defendem os direitos dos animais mesmo excluindo os animais humanos, nos perguntamos o que os fazem se opor à exploração animal. Pensamos nas diversas diretrizes da ética animal, e como não faz nenhum sentido elas serem tornadas seletivas:
a) Senciência
Seres humanos também são sencientes. Têm inclusive suas próprias maneiras – não superiores aos dos não humanos, a saber – de verbalizar, expressar e simbolizar o sentimento da dor e o sofrimento. Desejos como a substituição de cobaias não humanas por humanos presidiários em experimentos científicos, a repressão militar “enérgica” contra manifestações de esquerda nas ruas e a adoção da doutrina “Bandido bom é bandido morto” pela polícia implicam causar sofrimento, e são cruéis até mesmo para bem-estaristas.
b) Capacidade de sofrer
Sendo sencientes, seres humanos possuem tanta capacidade de manifestar sofrimento quanto animais não humanos. Ser contra a universalidade dos Direitos Humanos, mesmo expressando essa oposição com o eufemismo dos “Direitos Humanos só para humanos direitos”, implica não se importar com o doloroso e explícito sofrimento de milhões de seres sencientes humanos, castigados pelo desrespeito exercido pelos detentores de poder (políticos, empresários, latifundiários, militares, sacerdotes fundamentalistas etc.) aos Direitos Humanos.
c) Interesse próprio de continuar vivo e ser livre
É inegável que os seres humanos têm tanto interesse de continuarem vivos e almejarem a liberdade quanto os não humanos. Isso é expresso pelos humanos tanto pela própria dor, da qual tentam se livrar com todas as forças, como por suas lutas sociopolíticas, que atentam contra uma ordem que lhes causa privações e sofrimentos diversos e lhes nega direitos.
Pessoas que pisoteiam o interesse de outrem pela preservação da própria vida e pela conquista da liberdade são tão violentas e cruéis quanto os mais sádicos exploradores de animais.
d) Empatia dos defensores dos Direitos Animais
A empatia, capacidade de se colocar imaginariamente no lugar do outro, é um pilar emocional fundamental para uma pessoa reconhecer a importância dos Direitos Animais para os seres sencientes, assim como dos Direitos Humanos para os seres humanos. Aos anti-humanistas, falta empatia para com o sofrimento dos humanos alvos de discriminação, opressão e violências.
A seletividade de ser empático com uns e não com outros faz o indivíduo ser permissivo perante opressões contra aqueles pelos quais ele não sente empatia, e isso é igualmente aplicável aos especistas e aos opositores das lutas humanas. Ambos se equivalem quando o assunto é rejeitar a capacidade do outro de sofrer e querer ser feliz.
e) Compaixão e misericórdia por parte dos defensores animais
É absurdo acreditar que o sofrimento dos seres humanos enseja menos misericórdia e compaixão do que o dos animais não humanos. Para quem entende de Direitos Animais, esse absurdo também se aplica à crença especista de que o sofrimento não humano importa menos do que o humano.
Quando pensamos isso, percebemos o quanto é contraditório e nonsense alguém ter compaixão por porcos agonizando num matadouro, peixes morrendo de asfixia num barco de pesca e cães minguando abandonados nos becos de uma cidade, mas não sentir uma sincera misericórdia diante de mães chorando a morte violenta de seus filhos inocentes por policiais racistas, um ativista de esquerda agonizando de dor depois de ter sido torturado numa delegacia ou um adolescente em situação de rua dormindo numa calçada com fome e frio.
f) Oposição a toda e qualquer violência injusta contra seres sensíveis, por parte dos defensores animais
É um contrassenso alguém que se diz opor a “toda e qualquer violência injusta contra seres sensíveis” recusar-se a declarar abertamente repúdio a regimes políticos que prendem, torturam e matam pessoas cujo “crime” foi reivindicar liberdade e democracia; ou à doutrina racista e ditatorial da Polícia Militar no Brasil, a qual empurra policiais para matarem jovens negros em favelas, sem distinção de serem inocentes ou culpados e terem sido julgados ou não; ou à exploração trabalhista promovida por riquíssimas corporações, com direito a restringir ou negar direitos humanos fundamentais.
Alguém que tolera essas violências não se difere muito de quem aceita a perpetuação da pecuária, das fazendas de pele animal, dos rodeios e dos mais cruéis experimentos científicos em animais.
 
O que os animais não humanos têm que os humanos não têm, de modo que humanos sejam moralmente desprezados e a consideração moral dos vegans anti-humanistas os excluam?
Pensemos também em características que supostamente, na mentalidade de vegans anti-humanistas, tornam os animais não humanos em geral mais dignos de respeito, consideração moral e compaixão do que os seres humanos também generalizadamente. Em outras palavras, no que os faz abominar o especismo mas aprovar ou mesmo abraçar a misantropia e o ódio a minorias.
a) Vulnerabilidade a atos de violência e crueldade?
Animais não humanos são muito vulneráveis à violência cometida por seres humanos. Mas não muito menos do que seres humanos de diversas categorias sociais.
A quanto mais minorias políticas a pessoa pertence, mais vulnerável e alvo de discriminação ela é. Uma travesti lésbica, negra, moradora de favela, afrorreligiosa, nordestina e gorda, por exemplo, tem dezenas de vezes mais suscetibilidade a ser marginalizada e assassinada em São Paulo do que um homem cis branco, heterossexual, rico, cristão, paulistano nato e “sarado”. E é claramente um absurdo crer que seja eticamente correto e aceitável ignorar a vulnerabilidade de pessoas como ela e desprezá-la como sujeito de direitos.
b) Incapacidade de promover violência por vontade consciente e imoralidade?
A crença de que seres humanos em geral são capazes de promover violência por vontade livre e espontânea é uma falácia de generalização precipitada, e nega a capacidade do ser humano de se tornar ético.
Se o ser humano não pode ser plenamente ético – e, portanto, é sempre capaz de optar por cometer violências que não a legítima defesa –, então implica-se que ele não tem a capacidade de aderir ao veganismo e respeitar os Direitos Animais. Ou seja, crer que apenas os animais não humanos são livres da possibilidade de serem conscientemente violentos é renegar a possibilidade de difusão da ética vegano-abolicionista e inviabilizar a vitória da libertação animal. É, portanto, um tiro no pé de quem diz defender os animais mas exclui seres humanos.
c) Incapacidade de incidir em ações antiéticas?
A crença de que apenas seres amorais, incapazes de incidir em ações antiéticas, merecem respeito parte do pressuposto de que o ser humano apenas poderia ser ético e respeitável se fosse perfeito, incapaz de cometer desvios de ética – ignorando-se a capacidade humana do arrependimento e do perdão.
Isso implica uma falsa dicotomia (ou, neste caso, tricotomia), segundo a qual só poderiam existir seres amorais, seres morais totalmente éticos ou seres morais totalmente antiéticos, ignorando a capacidade humana de aprender e evoluir individualmente.
Esse desprezo à aprendizagem ético-moral humana implica o desprezo à própria capacidade de humanos respeitarem animais não humanos. Anula, por via da lógica, a suposta preocupação dos vegans anti-humanistas pelos não humanos.
d) Capacidade de manifestar e transmitir sentimentos de maneira “pura”, como carinho, amor, gratidão e amizade?
Quando alguém nega que seres humanos podem transmitir sentimentos positivos puros, como amor, amizade e gratidão, está necessariamente declarando que seres humanos não podem se amar uns aos outros e são incapazes, inclusive, de respeitar sinceramente os próprios animais não humanos.
Além disso, quando a pessoa incide nessa negação do sentimento sincero humano, está declarando que não ama ninguém – nem os próprios animais não humanos – nem nunca foi verdadeiramente amada, nem pela família, nem por amigos, nem pela parceria afetiva, nem por ninguém. Então há algo de muito errado com o psicológico da pessoa que diz respeitar apenas os animais não humanos.
e) Virtudes mais avançadas do que as de seres humanos?
Vale perguntarmos à pessoa que crê que os animais não humanos são mais “virtuosos” do que seres humanos o que é a virtude. Questionemos-lhes também como seres amorais, que não distinguem o moral do imoral, podem ser virtuosos.
Caso argumentem que os animais não humanos são capazes sim de comportamentos morais, então cai por terra o argumento de que eles são seres amorais e, portanto, incapazes de distinguir entre o certo e o errado. E é invocado o (hipotético) desprezo dos anti-humanistas por seres suscetíveis a ações antiéticas, o que anula o respeito dessas pessoas pelos animais não humanos.
f) Pureza de caráter?
É possível falar de caráter apenas em relação a seres capazes de distinguir o certo do errado, considerando-se que o caráter é atrelado à maturidade e desenvoltura ético-moral do indivíduo. Assim, quando se diz que o animal não humano é “puro de caráter”, está-se dizendo que animais não humanos podem sim ser capazes de discernir entre o moral e o imoral, entre o certo e o errado, entre o ético e o antiético. Com isso, a questão do tópico anterior vem à tona, anulando-se o respeito dos anti-humanistas pelos animais não humanos.
 
Possíveis objeções às críticas
a) “Mas eu só odeio aqueles seres humanos maus e cruéis.”
Se a pessoa realmente só tivesse ódio a seres humanos conhecidamente cruéis e sem caráter, então não estaria, por exemplo, discriminando moradores de rua; incidindo em machismo, racismo velado, xenofobia, transfobia, heterossexismo e outros preconceitos que atrelam desqualidades individuais a uma categoria inteira de pessoas; defendendo repressão policial contra protestos de rua de esquerda etc.
Tampouco seria misantropa, já que seu ódio não poderia ser direcionado à humanidade como um todo, mas sim a alguns indivíduos humanos maus. Além disso, o ódio a “apenas” algumas pessoas anula os argumentos misantrópicos que apelam a uma “natureza humana” cruel e violenta, já que assume que nem todos os seres humanos são maus e antiéticos.
b) “Tenho o maior respeito pelas pessoas de bem.”
Se uma pessoa tem “respeito pelas pessoas de bem”, então ela não poderia odiar a humanidade como um todo e lhe atrelar uma “natureza humana” corrupta. Além disso, é comum ver pessoas assim negando respeito, por motivos de racismo, machismo, transfobia, heterossexismo, elitismo, intolerância religiosa etc., a pessoas que são plenamente éticas e prejulgando-as.
Se misantropos e reacionários tivessem realmente “respeito por pessoas de bem”, seriam as primeiras a pedir, por exemplo, pela desmilitarização da polícia brasileira, pelo fim dos múltiplos preconceitos e discriminações, pelo fim do massacre de jovens negros em comunidades pobres… Em outras palavras, defenderiam ativamente os Direitos Humanos, ou no mínimo apoiariam seus defensores ativos.
c) “É claro que eu me importo com crianças e outros seres humanos indefesos.”
Se realmente se importasse, seriam as primeiras a lutarem contra o racismo, o heterossexismo, o machismo, o elitismo, o etarismo e tudo o mais de preconceitos e opressões que promovem a exclusão em massa de crianças e proporcionam indescritíveis violências contra elas. Ou seja, não seriam misantropas nem reacionárias, mas sim defensoras da libertação humana.
d) “Eu não sou racista, nem machista, nem nada disso.”
São numerosas as pessoas que dizem “não serem” nem racistas, nem machistas, nem heterossexistas etc., mas vivem reproduzindo racismo, machismo, heterossexismo etc. É o típico “não sou preconceituoso, mas…”.
Se a pessoa não tem esses preconceitos – ou os tem em desconstrução – e tem consciência de que é errado ser preconceituoso, ela necessariamente é contra essas diferentes opressões. Isso implicará, no mínimo, que ela não reproduza crenças socialmente reacionárias, geralmente baseadas em preconceitos e na naturalização de hierarquias, desigualdades e violências.
E a crença numa “natureza humana” ruim é necessariamente preconceituosa e naturaliza violências orientadas a controlar os seres humanos e colocá-los “em seu lugar”. Ou seja, se a pessoa realmente fosse contra os múltiplos preconceitos que assolam o mundo, então ela não poderia ser nem misantropa, nem reacionária, nem defender máximas como “Prefiro bicho a gente” ou “Queremos testes em assassinos e corruptos ao invés de animais inocentes”.
e) “Meu ódio é pelo que os seres humanos fazem de ruim e errado contra os seres não humanos.”
Se o indivíduo só odeia aquilo de ruim que os seres humanos fazem, então ele admite que o ser humano pode ser bom. Então não há nenhuma razão para que diga preferir “bicho a gente”, ou declarar ódio a pessoas de esquerda em função de sua posição política, ou defender que “bandido bom é bandido morto”, ou que criminosos em geral são seres “irrecuperáveis” e deveriam ser forçados a ser cobaias de experimentos científicos – já que, nesse último caso, o ódio é ao crime, e não ao criminoso.
 
Considerações finais
Diante da fragilidade e da autoanulação dos argumentos de quem diz respeitar ou “amar” os animais enquanto despreza a libertação humana, percebemos o quanto a posição deles não se sustenta racionalmente, além de ser autofágica ao se autoneutralizar. Notamos também que a própria posição política de ódio ostentada por vegans anti-humanistas põe em risco os próprios êxitos do veganismo e dos Direitos Animais.
Ser misantropo e reacionário implica necessariamente negar a capacidade dos seres humanos de serem bons, aprenderem Ética e mesmo respeitarem os animais. Ou seja, anula a qualidade deles próprios de “respeitadores” dos animais não humanos e põe um rochoso obstáculo para a própria educação/conscientização vegana, imprescindível para a sonhada vitória da libertação animal.
Ou seja, o anti-humanismo é frontalmente prejudicial e deletério aos Direitos Animais. Quando chegamos a essa conclusão, nos impelimos a reafirmar que não existe libertação animal sem libertação humana. E daí, reiteremos a nós mesmos que uma providência essencial na luta pela abolição da exploração animal é promovermos o desmonte do reacionarismo e da misantropia.
Portanto, vamos deixar claro que vegans anti-humanistas são tão ilógicos e apoiadores de opressão e violência quanto humanistas especistas. Façamos com que os anti-humanistas se sintam constrangidos e impelidos a rever suas crenças sobre os seres humanos.

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