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O Papel da Pecuária em nossa Crise Hídrica

20 de fevereiro de 2015
7 min. de leitura
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Há anos escrevi alguns artigos denunciando os diferentes impactos ambientais – destruição dos ecossistemas naturais, eliminação de fauna e flora nativos, contribuição ao processo de desertificação, poluição ambiental, diminuição da capacidade suporte, etc – causados pela pecuária e comparando os custos ambientais da produção de diferentes itens alimentares, especialmente no que diz respeito ao uso da terra e da água.
Nesses artigos faço afirmações na linha de que são necessários entre 20 e 30 mil litros de água para produzir um quilo de carne bovina (mas apenas 150 litros de água para produzir um quilo de trigo) e que cada cabeça de gado consome 50 litros de água por dia apenas para dessedentação; que a limpeza de uma única carcaça bovina no processo de abate consome mais de 1200 litros de água e que a lavagem de uma única carcaça de frango consome mais de 120 litros de água.
Mais do que um artigo na linha do “Eu tinha falado que a água ía faltar”, ou um artigo que pretenda tornar as pessoas vegetarianas para que assim economizemos mais água (economizar água deve ser um motivo subsidiário e adicional para a adoção do vegetarianismo, sendo a razão principal o respeito aos direitos animais), esse artigo se constitui em resposta a tantos desenganos e tantas desinformações publicadas pelos defensores da pecuária, tentando eximi-la de culpa frente a atual crise hídrica.
Tentativas de eximir a pecuária de culpa
Recordo-me, em um primeiro momento, de opinião publicada anos atrás no Estadão pelo então Secretario do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, Xico Graziano, onde ele defendia que a agropecuária não consumia recursos hídricos, pois a água que as plantas absorviam por intermédio de suas raízes voltava ao meio ambiente na forma de evapotranspiração, e a água que o boi bebia ao longo de 3 anos de vida (32.850 Litros de água) retornaria para o meio ambiente sob a forma de urina e transpiração (cabe informar que antes de Secretário do Meio Ambiente, o referido senhor tem formação em engenharia agrônoma e exercia cargos políticos sempre ligados à agropecuária).
Em seu artigo, ironiza o agrônomo: “Acontece que a urina dos animais, do homem inclusive, participa do ciclo da água na natureza, matéria elementar lecionada na quarta série do ensino fundamental.” Por outro lado, expõe o ex-secretário, a água utilizada nos processos fabris, no resfriamento de reatores, ou a “água virtual” que é exportada pelo Brasil para outros países sob a forma de matérias primas, sim, representariam um desperdício.
De forma semelhante, o Dr. Eduardo Pires Castanho Filho, também engenheiro agrônomo, escreve em seu recente artigo “Aquonegócio”:
Quem lê aqueles artigos, sem prestar-lhes muita atenção, acaba “vendo” a água sendo consumida pela agropecuária e “desaparecendo” nas “regas” da soja ou na sede inigualável dos bovinos. A soja não é “regada”, a água da chuva “passa” pela planta, onde 18% dela fica retida nos grãos na hora da colheita. O restante retorna ao ciclo novamente. Assim, apenas cerca de 640 litros ficam embutidos na produção anual de soja, ou 0,00005%!
O mesmo se passa com o gado. A pecuária bovina em São Paulo, a mais evoluída do país, é a atividade que mais produz água para a população paulista. Ouve-se muito que para se produzir carne bovina se gasta muita água. É verdade. Para produzir um quilograma de carne, são consumidos cerca de 8 mil litros de água, que, entretanto, é continuamente reciclada. Não fosse assim, o boi teria no abate cerca de 2 mil toneladas! Pelo mesmo raciocínio, um ser humano, adulto aos 15 anos, pesaria 16 toneladas. Ao considerar a água para a sua sobrevivência, ele pesaria 600 toneladas. Mas, como nas terras paulistas se produzem, em média, 120 quilogramas de carne (com 70% de água) bovina por hectare por ano, a pecuária acaba sendo a atividade de menor extração de água da agropecuária paulista.
Além desses, é possível encontrar outros artigos nessa linha. Mas me questiono se esses respeitáveis senhores, técnicos, especialistas em suas áreas de formação, realmente acreditam naquilo que colocam de forma tão contundente, fazendo a questão parecer tão óbvia que mereça ser considerado um enganador quem diz em contrário.
O fato de que há um ciclo da água não significa que não exista desperdício
Se vamos pensar simplisticamente em termos de ciclo d’água, que como muito bem colocado, todos deveriam conhecer desde a 4º série, nenhuma atividade do planeta “desperdiça” água, pois a água do planeta é a mesma desde a formação da Terra. Assim, seguindo esse raciocínio torto, exceto pelas viagens espaciais, que tiram alguns milhares de litros de água do planeta para levar às estações espaciais, nenhuma atividade humana desperdiça água.
Curioso que, se fossemos levar a sério isso, não apenas as excreções animais, a transpiração e a evaporação estariam isentas da possibilidade de comparação, mas também outras modalidades de uso de água que os autores condenam como desperdício. Por exemplo, a água que é adicionada nos refrigerantes (que um dia voltará ao ambiente sob a forma de urina humana), a água utilizada para resfriar reatores nucleares (que em determinado momento evaporará ou resfriará e voltará para o ciclo), ou a água que usamos para o banho ou para lavar a calçada (que depois de lavar escorre toda ela pelo ralo e de alguma forma vai parar em uma estação de tratamento de esgotos ou em um curso d’água).
Percebemos, portanto, o quão falho esse raciocínio é, porque também serve para eximir de culpa uma pessoa que toma um banho de 2 horas. Se for comparada a uma pessoa que toma um banho de 2 minutos ela poderá argumentar: “Mas eu não estou desperdiçando a água, pois não estou sumindo com ela. Depois que sai de meu chuveiro a água bate em meu corpo, escorre e vai pelo ralo; do ralo ela escorre pelo encanamento e atinge o esgoto; do esgoto ela segue pelas galerias até uma estação de tratamento de esgotos e depois cai no rio. Essa água assim não sumiu do sistema, ela apenas está fluindo em seu ciclo.”
Seria uma maravilha se isso fosse verdade, mas não é assim que devemos pensar.
O Ciclo da Água não é tudo
Quando pensamos em desperdício de água não estamos nos referindo, de forma alguma, a água deixando de existir no planeta, mas sim em água utilizável deixando de ser utilizada para uma finalidade que consideremos nobre.
É claro que se as vacas e os bois estão consumindo água que falta aos seres humanos, essa água está sendo desperdiçada, não importando que posteriormente o gado bovino venha a urinar a maior parte dela, porque a urina não é água utilizável por seres humanos (se assim o fosse, o conceito de “poluição de águas superficiais” perderia todo o sentido).
De toda a água presente no planeta, 97,3% está sob a forma de água salgada, nos oceanos. Sim, ela ainda é água e ainda faz parte do ciclo, mas a menos que sofra um dispendioso processo de dessalinização, ela não pode ser considerada água utilizável por seres humanos. É por isso que, mesmo cercada pelo Mar Vermelho, pelo Golfo Pérsico e pelo Oceano Índico, a Península Arábica permanece um local desértico, impróprio para a agricultura. E é por isso também que uma pessoa pode morrer de sede se estiver à deriva em um bote inflável no meio do oceano.
Os restantes 2,7% da água do planeta estão sob a forma de água doce, mas a maior parte desta se encontra sob a forma de gelo e neve (68,9%) ou como água subterrânea (29,9%). Só uma fração muito pequena de toda a água doce do mundo está diretamente disponível ao homem e aos outros organismos, sob a forma de lagos e rios (0,3%), ou como umidade presente no solo, na atmosfera e como componente dos mais diversos organismos (0,9%).
Trata-se, portanto, de um recurso abundante se formos considerar que há mais superfície coberta por água do que por terra no planeta, mas ao mesmo tempo trata-se de um recurso raro se considerarmos sua disponibilidade para utilização e distribuição irregular ao longo da superfície do planeta.
Se há relativamente tão pouca água doce no planeta e menos ainda são águas que se encontram para pronta utilização por seres humanos, se constitui em um desperdício, de fato, que 92% de toda a água doce utilizável seja destinada à agricultura, especialmente quando essa agricultura é praticada em sua maior parte para alimentar não diretamente pessoas, mas animais que alimentarão pessoas em outros continentes – a chamada água virtual. Não há duvida de que a pecuária seja a vilã do desperdício de água, não entendo como que pessoas técnicas possam argumentar de forma diferente.

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