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A dor do outro ou 'o Grand Canyon que precisamos fechar'

22 de novembro de 2014
3 min. de leitura
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Ilustrção: Giambatista Della Porta

“Bom, nós estamos indo muito bem, eu suponho / Com nossos carros reluzentes e roupas da moda /
Eu visto preto pelo velho doente e solitário /Eu visto preto em luto pelas vidas
que poderiam ter existido/ Há coisas que nunca serão corretas /
E coisas que precisam de mudanças em qualquer lugar que se vá”
(Johnny Cash, em ‘Men in black’)

E aí as pessoas ditas instruídas, esclarecidas, antenadas no mundo porque usam muito o celular, experientes, ‘exemplo para a família’, pouco se importam com o trajeto que a comida fez até chegar a seus dentes. Muitos dão risada, do eco-churrasqueiro ao egoico que está na vida para aproveitar, e dane-se o remorso.
(A dor do outro. Alguém que nasceu já para preencher a demanda de ingredientes culinários. Morreu para ser picotado e virar nome incompreensível no rótulo dos pacotinhos de alimentos industrializados).
Ao contrário, muita vezes uma conversa informal com leigos sobre o veganismo – porque o povo adora fazer sabatina ao ouvir as palavras mágicas – acaba capotando em dicas de saúde, cuidados na hora de bem escolher os alimentos, e recomendações-de-vó. “Diz que tudo que tem glúten faz muito mal, a gente tem que passar longe”, me dizia esses tempos uma cidadã-padrão, enquanto se servia de generosas conchadas de macarrão. De trigo.
Não, diacho, eu não estava falando sobre segredos para o bem-estar, novidades para emagrecer ou o último grito das naturebices de shopping – ração humana, chia, gordura de coco, amaranto, linhaça dourada, quinua, sal rosa ou o próximo campeão de bilheteria. Eu estava falando sobre a dor do outro. A solidão, a corrente, o confinamento, a separação, os chutes eventuais, o isolamento, o mau cheiro, o medo do humano, a faca amolada.
“O ______ é vegetariano convicto mas não resistiu ao meu churrasco na semana passada”, comentou, tentando ser simpática e participar da conversa, outra pessoa que também estava à mesa nessa ocasião. Garantia de que realmente a carne estava irresistível.
E penso que talvez o descolamento de duas realidades – o animal que ‘nasce para morrer’, digamos, e a gastronomia – seja o Grand Canyon que precisamos fechar. Haja gotinhas de Super Bonder. Porque essa fenda que nós – ativistas, pensadores, profissionais militantes, simpatizantes – ora começamos a estreitar, é o que garante uma das muitas pernas dessa máquina trituradora chamada ‘desenvolvimento’. Nunca vi tanto orgulho, emoção sincera e boca cheia como naqueles que fazem o discurso desenvolvimentista – que devem ganhar muito dinheiro com isso. Porque o resto do povo, aplaudindo, entra como lombo em festa de chicote. E aplaude, e vota. E olha torto para aqueles que, ousados!, topam falar em algo diferente.
Em algo que não exija o moedor de carne, de almas e de tempo de vida como modelo. Um sistema em que o hamster não tenha que correr na rodinha. Metaforicamente falando, claro.
Porque uma sugestão de rota – veganismo, antidesenvolvimentismo, ateísmo financeiro, iconoclastia laboral – acaba desandando em palpites curtos / rasos sobre saúde, ou trabalhar menos, ou “eu trabalho muito porque eu gosto”, como ouvi nessa mesma ocasião supracitada. OK. Talvez as pessoas estejam tão orgulhosas de se perceberem marchando no passo milimetricamente certo, farda alinhada, depois do medo de não conseguir, que a ideia de ir para outro lado soa estranha, quase uma imprudência. Parar, então, é desperdiçar possibilidades, deixar de aproveitar o que a vida oferece.
O que me lembra uma anedotra real. A Vanguarda Abolicionista fazia uma ação no Dia das Mães, anos atrás, e um gaiato se aproximou para fazer as perguntas óbvias e observações inteligentes que você, leitor, bem imagina. “Então vocês não comem carne?! Estão deixando de fazer a melhor coisa da vida”, riu o subgênio, para quem o sexo deve estar lá pela quinta ou sexta colocação no ranking. Empatado com o amor e com, digamos, capas exclusivas para smartphone, que tal?

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