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Conto (quase triste) de natal

5 de dezembro de 2013
4 min. de leitura
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Eis que chego a São Paulo, mais uma vez, para me perder nas avenidas vertiginosas de seus descaminhos tantos. É um trafegar de um lado para outro, nesse labirinto vivo que se torna a própria pulsação da cidade-ciclope. Em dezembro parece que tudo se agrava, qual alarme do fim do mundo, o rumor das máquinas, a multidão de carros, os apelos natalinos, as nossas inquietações. Logo no início da marginal do Tietê, vindo da via Dutra, é impossível não ver aquele boneco vermelho gigantesco, inflado em seu monstruoso apetite de não sei o que, anunciando sua presença soberana a quilômetros e quilômetros de distância. Tento não desviar o olhar, concentrando-me na pista que acompanha o rio que um dia foi rio, mas é inútil. Se bem que quase posso ver à minha esquerda, pelo leito das águas paulistas, o jacaré Jorge Ginga e o papagaio Eurico navegando num bote, a caminho do sertão. Mas à direita o símbolo maior do Natal surrealista continua ali, onipotente em sua imagem plástica, porta-
voz da grande festa anunciada, convite ao comprar ao comer e ao beber até cair. Entre a imaginação e a realidade, contudo, há uma ausência física irreparável.

Por isso eu tenho que prosseguir em meu caminho e cruzar a metrópole, até a zona oeste. Sigo adiante. Meu destino é a Rua Jasper Negro, lá no bairro onde nasci e onde tudo se acabará um dia. O ser e o nada. Trago comigo um ramo de flores e uma lembrança que não cessa, certo de que o verbo recordar, em seu significado etimológico mais autêntico, significa lembrar com o coração. Lembro-me de tudo, de seus primeiros desenhos, das tiras e charges nos jornais, da série ecologia em quadrinhos e de uma das mais belas histórias infanto-juvenis que alguém já escreveu: “O segredo de Zirzilim” (o menino que via tudo de cabeça-para-baixo). Lembro-me de seus roteiros de cinema e da trilogia da indiazinha Tainá, que propiciou à criançada diversão pra chuchu e ainda por cima conscientização ambiental. Lembro-me sempre das aventuras de suas personagens pelo Amazonas e pelo Pantanal, quando o herói crocodilo – exatamente como você – tinha um modo todo sorridente de falar de coisas sérias. Lembro-me também dos natais de antigamente, daquela humilde arvorezinha de arame coberta com neve de algodão, tempo em que os animaizinhos do presépio confabulavam,
tempo em que éramos simples, puros e felizes.

Já passei a ponte da Casa Verde e minha casa parece cada vez mais longe. Pouco importa. Tenho uma missão a cumprir e não há tempo a perder. O pensamento voa e por vezes se recusa a acreditar que a morte é real, como que desafiando a sua face mais perversa. Por que interromper uma vida na plenitude, por que a injustiça de morrer jovem, por que matar o que é essencialmente vida? Sei que de nada adianta praguejar contra a fatalidade, noiva sinistra do homem da foice. A morte não combina com humor, não rima com alegria, não gosta que riam da sua careta sem graça. Melhor então é olhar de soslaio às luzes de dezembro que começam a alumiar esta cidade de cimento e pedra, luzes que também acendem uma presença em mim. Ao menos há o conforto de saber que na sua breve aventura existencial havia um bichano e três outros bichinhos a lhe trazer felicidade, ah esse amor incondicional dos animais capaz de aplacar nossas angústias mais secretas.

Lapa, enfim. Desligo o motor quase morto de cansaço mas aliviado em ver os portões de ferro ainda abertos. Aproximo-me da quadra derradeira em que você está, no sol extinto do fim de tarde, para então depositar estas flores sobre sua laje fria (flores que amanhã serão murchas). Silêncio. É hora de pensar em seu desapego diante da vida, em sua espontaneidade traduzida em palavras e ações, em sua extrema coragem perante a dor, em sua capacidade de enxergar beleza nas pessoas e no mundo. Você que tanto acreditou no papel transformador da arte, que tanto cultivou o respeito pela natureza e pelos animais, que tanto lutou pela cultura de um país, você que tanto amava a vida… Por isso esta pequena elegia, guerreira Kirimbau, porque – conforme suas próprias palavras – “Índio não morre… vira pássaro, vira bicho, vira floresta”. Aqui estou, minha irmã, a lhe dizer adeus. Ou seria apenas um “até breve”?

(Este texto é dedicado à memória de Cláudia Levay)

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