EnglishEspañolPortuguês

Pesquisador responde à presidente da SBPC, defensor do uso de animais em testes

25 de novembro de 2013
10 min. de leitura
A-
A+

Em recente comunicado à imprensa (“O Estado de S.Paulo”, 22/11/2013), a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Sra. Helena Bonciani Nader, manifestou intenção de apelar ao Congresso para que seja garantido o uso de animais na pesquisa científica. Seu movimento está em clara sintonia com recente carta de sua autoria em nome da SBPC (08/11/2013) dirigida à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, em que a Sra. Nader manifesta profunda preocupação com o PL 780/2013 do Dep. Estadual Rogério Nogueira (DEM-SP). Este projeto de lei busca proibir e controlar melhor o uso de animais em pesquisas científicas que possam causar-lhes sofrimento físico ou psicológico. No terceiro parágrafo dessa carta, a Sra. Helena Nader diz que o referido projeto de lei “ (…) desconhece totalmente as práticas científicas realizadas internacionalmente.”

A Sra. Nader tem razão nesse ponto.

Tanto o autor do projeto como a sociedade civil – em sua ampla maioria – desconhecem verdadeiramente o que se faz com animais em laboratórios de pesquisa científica. Da mesma forma, a sociedade não tem percepção técnica do quão tendenciosa e falha é nossa Lei Federal 11.794 de 2008 (popularmente conhecida por Lei Arouca), a qual autoriza e regulamenta a prática da experimentação animal no Brasil. A sociedade civil brasileira não entende como são feitas as avaliações metodológicas e como são elaborados os pareceres de aprovação de pesquisa científica nos aclamados e elogiados Comitês de Ética de Uso Animal (CEUAs) cadastrados pelo CONCEA. como lixo hospitalarpara posterior incineração – isso, quando há empenho e fiscalização apropriados.Entre várias outras ignorâncias, pode-se afirmar que a sociedade civil não conhece ou entende os aspectos supracitados porque é interessante para algumas partes que ela não os conheça ou os entenda.

Sustento minha declaração na qualidade de profissional da Ciência, acostumado ao jargão técnico-científico da área, à constante leitura e prática do fazer científico e ao convívio pessoal e profissional com diversos cientistas das ciências biológicas em todas suas variantes e níveis hierárquicos. Fica evidente a existência de um imenso abismo entre o que a comunidade científica diz fazer e o que ela de fato faz quando nos referimos à pesquisa científica com animais não-humanos. Não porque haja necessariamente má-fé por parte dos cientistas. Mas simplesmente porque, para muitos cientistas, o que realmente importa não são os animais, mas sim os resultados obtidos, a publicação de artigos científicos, a construção de um currículo profissional, as pontuações junto a órgãos de fomento e o futuro financiamento de mais pesquisas, equipamentos, animais e insumos laboratoriais. Há sempre, claro, a alegação de que vidas são salvas com esses procedimentos. Mas que fique entendido: nunca a curto prazo; dificilmente à médio. Curas são processos longos, burocráticos e que envolvem acordos políticos e econômicos de grandes dimensões. Qualquer bom cientista sabe disso. Nesse grande intervalo de tempo entre uma ideia e um resultado, centenas de milhões de animais não-humanos – no Brasil e no mundo – são a parcela explorada e massacrada por essa “cadeia alimentar” científica.

Fato incontestável que a Sra. Nader reforça é que, para a comunidade científica, o importante é que a sociedade não entenda (nem veja) como animais são usados nesse processo. O verbo “usar”, aliás, é espantosamente preciso. Animais não-humanos são usados e descartados (executados, mortos) como simples objetos ao final dos protocolos experimentais – salvo quando precisam ser ressubmetidos a uma série de procedimentos, física e psiquicamente, extenuantes. Como exemplifica a Sra. Nader em sua carta à Assembleia “(…) pesquisa na área de dor, requer procedimentos mundialmente padronizados que preconizam a submissão do animal ao estímulo da dor.“ Sim, ela tem razão. Talvez os procedimentos sejam internacionalmente padronizados, mas nem por isso sejam eticamente aceitáveis. Em estudos como aqueles citados pela Sra. Nader, animais são submetidos deliberadamente à processos dolorosos e traumatizantes para que dados de natureza bioquímica, eletroquímica, físico-química e comportamental sejam coletados pelos cientistas. Sim, comportamentais também, afinal, diante da dor e do estresse, animais manifestam comportamentos condizentes com a agressão recebida.

Nesses dolorosos experimentos – que não são nada raros – animais de cognição complexa, sofisticada e tão antiga quanto o processo evolutivo possibilitou existir, são propositalmente submetidos a choques, inanição, sede, privação de luz ou escuridão, restrição de movimentos, cortes, raspagens, punções, entre outros procedimentos que, se aplicados a humanos, seriam imediatamente classificados como tortura. Essas práticas são empregadas muitas vezes sem qualquer analgesia ou anestesia, já que a presença dessas substâncias no organismo das cobaias alteraria a pureza científica dos dados coletados. Ao final desses protocolos, reduzidos oportunamente a expressões como sacrifício ou eutanásia, animais são executados e descartados como lixo hospitalar para posterior incineração – isso, quando há como lixo hospitalar para posterior incineração – isso, quando há empenho e fiscalização apropriados.

Diante desse cenário de horrores, como estratégia para fugir dos complicadores linguísticos que deixariam evidente essas práticas de tortura, cientistas utilizam-se generosamente de eufemismos e terminologias obscuras tais como deslocamento cervical, decapitação, concussão, congelamento rápido, exsanguinação, embolismo, perfusão cardíaca, punção periorbital, choque por inalação ou por depressão do sistema cardiorespiratório, entre tantos outros. Para o leigo naturalmente, quase nada dessa informação fica – o que é muito bom quando não se deseja contestação e publicidade. Não é por outro motivo que laboratórios furtam-se à exposição pública e ao acesso facilitado. Escondidos por trás de cercas e muros, localizados em lugares afastados e ermos, acessíveis através de diversas portas, crachás e autorizações
prévias, ocultos nos subsolos de edifícios insuspeitos, cientistas justificam todo esse aparato como forma de proteger seus equipamentos, seus resultados e a propriedade intelectual das pesquisas desenvolvidas. Será? Afirmo que não há interesse por parte da comunidade científica em divulgar à sociedade, números ou episódios gráficos do que se faz na experimentação animal. E essa é uma conduta mundial.

Fiscalização é um aspecto controverso nesse campo. Na experimentação científica com animais praticada em laboratórios brasileiros, quem de fato fiscaliza os procedimentos empregados são os próprios envolvidos e interessados. Nada mais suspeito. Os tão elogiados Comitês de Ética de Uso Animal (CEUAs) atuam numa esfera absolutamente burocrática, de breves e esporádicos encontros, onde geralmente membros da instituição de pesquisa avaliam tecnicamente o trabalho de colegas do próprio estabelecimento. Ainda que haja boa vontade entre os participantes, há claramente um vício nesseprocesso o qual envolve o interesse em manter um bom relacionamento interpessoal, direto e indireto, entre profissionais da mesma instituição.

Mesmo assim, ainda que protocolos de pesquisa submetidos sejam contestados e corrigidos pelo Comitê de Ética, a realidade prática da experimentação está sempre restrita ao universo fechado e intransponível dos laboratórios avaliados – local este em que a conivência muitas vezes involuntária de alunos e técnicos é sujeita à uma chefia responsável por controlar tudo que lá se faz. Resulta fácil concluir que este é um ambiente agreste à denúncias. Afinal, se você está envolvido num experimento animal com mais duas pessoas, não é muito difícil imaginar de onde possa ter surgido uma suposta denúncia de maus-tratos que por ventura venha a ser investigada. Em um cenário onde alunos são bolsistas e muitos técnicos são terceirizados, estes também são um elo fraco na “cadeia alimentar” científica.

Afirmo que experimentação animal e maus-tratos são termos indissociáveis. Simples assim. Não há qualquer coerência no emprego dos termos “experimentação animal” e “bons tratos” na mesma sentença. Não basta proporcionar ao animal em cativeiro e clausura, água, comida, um esconderijo, visando invocar posteriormente a chancela das “Boas Práticas de Laboratório”. Boas para quem? Para o experimento, para o experimentador ou para o animal? Privar organismos de sua liberdade, de sua vida social e de seus projetos e interesses é por definição básica inflingir maus tratos em seu sentido mais evidente.

Em sua carta, afirma ainda a Sra. Nader: “Vale ressaltar que todos os procedimentos envolvendo animais requer (sic) aprovação prévia por Comissões de Ética com Uso de Animais (CEUAs) para sua aprovação (de acordo com a Lei Federal 11.794 de 2008) e, nos casos em que o animal for submetido a algum tipo de estresse a justificativa para esse procedimento deverá estar fundamento (sic) em protocolos aceitos no país e no exterior.“. Mais um artefato retórico. Como ficou muito claro diante do incidente envolvendo o Instituto Royal (São Roque/SP), o CEUA da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP) autorizou experimentações animais nesse instituto para fins de uma dissertação de mestrado envolvendo 38 beagles (19 machos e 19 fêmeas, com idade entre 4 e 14 meses) no período de outubro de 2009 a novembro de 2011. Todos os cães foram mortos. Este estudo, voltado à análise de dados de hematologia, bioquímica e anatomopatologia de cães controle usados em estudos toxicológicos, dedicou-se a obter dados já conhecidos pela literatura científica. Mais grave ainda é constatar que o parecer positivo do CEUA (FMVZ-USP) responsável, data de 17 de maio de 2012: período posterior – e não prévio – à realização da experimentação animal reivindicada. Casos como esses são abundantes e facilmente verificáveis.

Ainda no manifesto da SBPC, a Sra. Nader declara que o “desenvolvimento de modelos animais de doenças requer a submissão de animais a procedimentos cirúrgicos.” Pergunta-se: em que grau é ético desenvolver deliberadamente um animal que manifesta crônicamente uma doença, que já nasce doente e assim é mantido de propósito? Há mais. “Um exemplo ilustrativo é o modelo de infarto do miocárdio onde o coração do rato é exteriorizado por compressão lateral do tórax e a artéria coronária esquerda ligada com fio de sutura (…). Esses animais são, portanto, submetidos a uma cirurgia de grande porte que causa certo nível de estresse.” Não desperta no leitor certa curiosidade entender como os brilhantes cientistas concluem, sem qualquer dúvida razoável, que o estresse causado ao animal restringe-se a um mero “certo nível”? Mais. “Todavia, os cuidados pré e pós-operatórios (com uso de analgésicos e outros procedimentos também realizados em cirurgias em humanos) minimizam o sofrimento infringido (sic) ao animal. “. É de fato reconfortante saber que cientistas reconheçam a necessidade de minimizar um sofrimento previamente inexistente e que foi deliberadamente infringido nesses animais. Mas talvez devêssemos nos perguntar: em que momento houve autorização para causar esse sofrimento?

Resumidamente, toda a argumentação feita pela Sra. Nader em seu manifesto da SBPC e em reportagem ao periódico Estado de São Paulo (22/11/2013) parece resumir-se às três seguintes declarações: (1) “Eu trabalho com pesquisa de drogas anticancerígenas e para o combate de trombose. Não tenho como experimentar em humanos. Como isso vai ser feito?”; (2) “(…) o PL é preocupante e coloca em risco a pesquisa científica na área da saúde no estado de São Paulo, Estado esse que contribui com mais da metade da produção científica nacional.”; (3) “O PL em voga, desta forma, inviabilizaria qualquer tipo de pesquisa que pudesse causar qualquer tipo de estresse em animais nas mais diversas áreas do conhecimento (…) inviabilizando o trabalho de cientistas nos Instituto de Pesquisa em todo o Estado de São Paulo, que hoje é responsável pela maior porcentagem das pesquisas científicas produzidas em território nacional.”

Diante de preocupações mais explicitamente acadêmicas e produtivistas do que propriamente éticas ou metodológicas, entendo que devemos realmente nos preocupar com a qualidade dos cientistas que financiamos com nossos impostos.

Frank Alarcón, 40 anos – Graduação em Biologia Molecular (UNICAMP), Mestrado em Físico-Química (USP), Doutorado em Bioética (UFF), Pesquisador do Governo Federal em Inovação Tecnológica e Patentes na área de Biotecnologia e afins.

Referências:
1 – http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,sbpc-quer-aval-da-camara-para-teste-combicho–,
1099362,0.htm

2 – http://www.sbpcnet.org.br/site/artigos-e-manifestos/detalhe.php?p=2074

3 – Castro, Simone Oliveira de; Maiorka, Paulo César. “PERFIL LABORATORIAL HEMATOLÓGICO,
BIOQUÍMICO E ANATOMOPATOLÓGICO DE CÃES DA RAÇA BEAGLE.” Dissertação de Mestrado, USP –
Defendida em 05 de setembro de 2012.

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,sbpc-quer-aval-da-camara-para-teste-com-bicho–,1099362,0.htm

Você viu?

Ir para o topo