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Os filósofos e os animais

28 de fevereiro de 2012
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“Da verdade mesmo ninguém nunca quis saber”: foi com esta frase de Nietzsche que terminamos nosso texto anterior sobre a crueldade. De fato, Nietzsche não chegou a pensar na questão da libertação dos animais, mas, certamente, contribuiu, e muito, para despertar a consciência do homem sobre sua própria tirania e covardia, desferindo golpes certeiros na soberba de nossa espécie. Talvez ele ainda estivesse ocupado demais em tirar a venda dos nossos olhos e, mais ainda, com a própria ideia da verdade, porque, como ele próprio dizia, “o que até hoje se chamou de verdade não passa de uma mentira”.

É claro que, como em tudo na história humana, as ideias de Nietzsche foram distorcidas, sobretudo por sua própria irmã, que, alterando vários trechos de sua obra, fez dele o porta-voz do nazismo e de estúpidas ideias, tais como a de superioridade racial, superioridade de povos, etc. Felizmente, quem já leu atentamente a obra de Nietzsche sabe que ele é bem democrático quando se trata da humanidade: a sua crítica se estende a todos os homens e se existe alguma superioridade, ela diz respeito ao caráter, à nobreza do espírito.

Pois bem, também é de Nietzsche (como já sabemos) a ideia de que o homem é o animal que perdeu sua saudável razão natural, voltando-se, por conta disso, contra a própria natureza que o gerou, ou seja, contra a vida – o que, no final das contas, significa voltar-se contra si mesmo. Sim, por qualquer ângulo que se olhe este verdadeiro circo de horrores que tem sido a vida humana e, mais ainda, a vida dos animais, não é possível acreditar que somos realmente seres superiores, ou mais sensíveis, ou mais justos… Ao contrário, o que fica claro olhando a humanidade é que temos sido completamente indiferentes à dor e ao sofrimento do “outro”, seja este “outro” o próprio homem, um animal ou a natureza como um todo.

É inegável que algumas ideias religiosas e místicas têm dado, há séculos, o melhor argumento para o homem se servir de todas as coisas indiscriminadamente (afinal, para algumas religiões, sobretudo as ocidentais, o homem tem uma natureza diferente da dos demais seres deste mundo). Mas, para lá destes devaneios que o homem inventou para si, a única coisa certa é que ele não pode escapar de uma lógica que impera sobre todos os sistemas vivos do planeta. É assim que, ao dispor impiedosamente de todas as espécies, para que apenas a sua própria sobreviva, o homem está promovendo o seu próprio suicídio.

Não existe, de fato, um único argumento racional capaz de legitimar a tirania humana. E o problema, além da própria questão ética que se impõe de modo inescapável (pelo menos para os que pensam ou que ainda são capazes de sentir), é que esta posição tirânica é também, como dissemos, uma posição suicida, já que o homem não se sustenta e nem sobrevive fora da natureza que o gerou. Ao provocar tantos distúrbios e desequilíbrios, o homem não está colocando em jogo apenas as outras vidas, mas também a sua própria. Em poucas palavras, é a si mesmo que o homem está ferindo quando fere a natureza. E, mais ainda: é porque ele tem sido um suicida que ele mata os seus iguais. Eis porque Thomas Hobbes está certo ao afirmar que “o homem é o lobo do homem”, embora não faça nenhum sentido uma espécie viver em guerra consigo mesma.

Claramente, há algo de muito errado conosco, embora a continuidade deste comportamento tenha levado os próprios homens a se acostumarem com a tirania e a entenderem como natural esta imensa insensatez que é voltar-se contra a natureza e contra a sua própria espécie. Mas é claro que no que tange aos animais, a tirania do homem atinge o seu limite máximo. Para começar, os animais são tratados como coisas, como meras mercadorias, objetos descartáveis de uso para a nossa comodidade ou prazer. Mas, embora ninguém pareça se dar conta disso, estamos falando de seres vivos, sencientes (ou seja, de seres dotados de sensibilidade, que sentem dor, prazer, medo, etc.). É realmente de se estranhar que poucos intelectuais, pensadores e filósofos toquem nesta questão, como se subjugar todas as espécies do planeta fosse mesmo um direito natural da nossa espécie.

De fato, há, inclusive, quem defenda certas manifestações culturais atávicas e cruéis com o argumento de que são “tradições” (como touradas, vaquejadas, rodeios, etc.), mas isto só aumenta a nossa certeza de que algo está (ou sempre esteve) muito errado com nossa querida e aclamada “razão”. Afinal, tradição por tradição, a escravidão humana também era uma tradição milenar em muitas culturas, tanto quanto o canibalismo e os sacrifícios humanos… E, sem falar que, em alguns lugares, a própria pedofilia não é uma prática condenável.

Sim, sabemos o quanto é difícil propor uma ética ou uma moral universal; sabemos das dificuldades e dos perigos que se alojam na defesa de certas práticas culturais em detrimento de outras; termos como “raça superior”, “cultura superior”, estão desgastados e trazem o peso de séculos de exploração dos ditos “colonizadores”. Porém, descambar para o oposto e considerar que todas as práticas são válidas e devem ser respeitadas apenas porque são “culturais” ou “tradicionais” é perder completamente o senso e, sobretudo, mergulhar a razão num irracionalismo profundo. Não existem raças superiores ou culturas superiores em si, mas existem valores humanos superiores, existe superioridade ética e moral, e negar isto é também negar a própria noção de humanidade.

Sem dúvida, José Saramago estava certo ao afirmar que “o instinto parece ter servido melhor aos animais do que a razão ao homem”. Afinal, os animais não escravizam e nem matam por razões torpes… Isto, aliás, foi objeto de reflexão em nosso texto anterior: um animal pode ser selvagem, mas nunca será um tirano, e se alguém ousa dizer que ele faria a mesma coisa se tivesse a nossa inteligência, então, mais ainda é preciso pôr em xeque a própria razão, porque ela é, ao que tudo indica, o que nos distingue para o melhor, mas também para o pior.

É claro que esta questão é muito mais complexa do que parece. Até porque o homem tem sido movido muito mais por ideias ilusórias e irracionais do que por uma racionalidade mais sadia. E é exatamente pelo efeito destas ideias mirabolantes (a maioria de fundo místico e religioso, embora algumas delas sejam “embasadas” pela ciência e pela filosofia) que o homem se julga não apenas superior em inteligência aos outros animais, mas até mesmo feito de outra natureza, como dissemos acima. Não é à toa que ele desconsidera tanto os outros seres, já que neste seu “mundo próprio”, neste seu sonho megalômano de grandeza, ele é uma espécie de deus que habita entre as feras do mundo. Infelizmente, também na filosofia encontramos exemplos de insensatez, que acabam corroborando certas ideias estapafúrdias.

Que muitas ideias místicas e religiosas costumam estar na base de vários preconceitos com relação aos animais é um fato incontestável; mas pode-se dizer que foi a filosofia que produziu uma das mais tirânicas ideias até hoje concebidas. A filosofia ou, mais especificamente, um filósofo – se é que podemos chamar alguém que produz tal heresia, contra a vida e contra a verdade, de filósofo. Estamos falando da ideia das “máquinas sem alma” e das “máquinas com alma” de Descartes. Sem dúvida, neste mecanicismo pueril, Descartes sugere que a diferença entre homens e animais é que os primeiros têm alma, sentem, pensam, sofrem, etc., enquanto que os segundos seriam apenas meras engrenagens materiais que obedecem cegamente às leis deterministas da natureza.

Bem, tirando o fato de que é mais provável que os animais tenham alma e que Descartes é que não tenha, já que alguém que praticava a vivissecção como ele (uma das práticas mais ultrajantes e covardes que o homem já inventou) não pode realmente ter sentimentos, nada nos parece mais ridículo (ou estúpido, para usarmos a expressão de Voltaire a respeito desta tese cartesiana). O que ocorre, no entanto, é que, ridícula ou não, esta concepção serviu de base (ou de pretexto), desde o século XVII, para as ciências usarem os animais como cobaias, sem qualquer compaixão. É fácil perceber a força que uma quimera pode ter quando reforçada pela ciência e pela filosofia – que deveriam servir sempre ao conhecimento e à verdade, por mais que esta palavra também esteja desgastada em nosso mundo (pela má leitura que foi feita da crítica nietzschiana à verdade absoluta). No fundo, todo mundo hoje acha que a verdade é tão relativa que cada um pode possuir uma só sua.

De fato, temos aqui um caso em que a filosofia produziu mais mal do que bem aos homens, dando à ciência um “bom” argumento para ela agir tiranicamente e sem qualquer culpa no que tange à exploração dos animais. Mas, cá entre nós, quem age tiranicamente, e sem culpa, ou não pensa ou não sente. Se é difícil provar que os cientistas que agem assim não pensam, já que são homens inteligentes, então, devemos concluir que eles não “sentem” – e, portanto, eles, sim, são máquinas sem alma. Seja como for, é a própria ideia de máquinas sem alma e com alma que é desprovida de lógica e racionalidade. O problema é que, segundo pensamos, mais perigosa que a ignorância é a inteligência sem a sensibilidade, ou seja, um homem inteligente e sem sentimentos pode fazer coisas que transcendem todos os males da ignorância.

Bem, felizmente, para um Descartes, existem muitos outros filósofos que, pensando ou não diretamente na questão dos animais, estendiam a todos a necessidade de compaixão e respeito. E aqui citamos um deles, que lidou diretamente com esta tirania: Porfírio de Tiro, filósofo neoplatônico que viveu no terceiro século de nossa era (e que foi o maior dos discípulos do célebre Plotino). Para Porfírio, os homens têm pensado mais com o estômago do que com a cabeça, pois só isto explica, para ele, este gosto mórbido por comer cadáveres (sim, cadáveres, é o que ele diz). Também só isto explica, para ele, esta total apatia e falta de humanidade diante do sofrimento alheio. Se somos mesmo seres racionais ou, mais especificamente, se realmente somos seres espiritualmente elevados, como pensava o próprio Porfírio, como podemos aceitar esta tirania da nossa espécie? Como podemos simplesmente viver alheios a tudo isto? A resposta poderia ser: “somos movidos por hábitos ancestrais” ou “é um mal necessário” ou, simplesmente, “nossa agressividade é uma herança do nosso passado selvagem”… Bem, talvez estes argumentos convençam algumas pessoas (afinal, nada melhor do que culpar a própria natureza pelas nossas terríveis disposições).

Pois bem, para este autor do “Tratado da abstinência da carne dos animais”, além da crueldade, a carne ultraja o corpo e o espírito, levando a um adoecimento geral do homem. Sim, é fato que aqui também nos deparamos com um universo um tanto místico e ascético (dada a influência que o pitagorismo exerceu tanto sobre o platonismo quanto sobre o neoplatonismo de Plotino). E, como sabemos, uma das teses fundamentais do pitagorismo, com a qual Platão e Plotino nunca romperam, foi a da transmigração das almas (ou metempsicose, que é a concepção de origem hindu de que as almas sobrevivem ao corpo e podem animar outros seres, humanos e não humanos).

É claro, então, que se poderia alegar que também há algo de religioso e místico nas suas ideias, mas o principal aspecto deste escrito de Porfírio não é a sua crença em um espírito dissociado do corpo (crença, aliás, bastante comum entre os homens) ou na transmigração das almas, mas, sim, o fato de que ele é o primeiro texto filosófico a tratar dos efeitos nocivos do consumo da carne do ponto de vista da saúde do corpo, e não apenas de um ponto de vista puramente espiritual. Sim, para Porfírio, a ingestão da carne provoca muitos males ao corpo, tornando-o pesado e dificultando o próprio pensamento (fato que hoje seria fácil de provar pela ciência e pelo conhecimento mais profundo de nossa fisiologia, já que a carne demora demasiadamente para ser digerida por um organismo que não foi feito para ela).

Seja como for, é verdade que, para Porfírio, o maior mal que o homem provoca a si mesmo matando outros seres é, sem dúvida nenhuma, o mal moral, que é esta espécie de torpor ou sonolência ética em que a humanidade mergulha toda vez que fecha os olhos para a escravidão ou para o assassinato de qualquer ser vivo. Sem dúvida, é assim que o homem aprende a fechar os olhos também para o que se faz com o próprio homem, como vimos no texto anterior. Afinal, o aprendizado para a guerra ou para a exploração do outro depende de uma insensibilização que deve começar ainda na mais tenra infância. Em poucas palavras, nós diríamos que o desprezo e a apatia diante da dor alheia, a começar pela dor do animal, é o começo de um longo processo que tem como meta levar ao entorpecimento da sensibilidade e dos sentimentos em geral. Afinal, é preciso, antes de tudo, endurecer o homem para que ele possa, enfim, matar o próprio semelhante e, ainda por cima, sentir que está cumprindo um dever.

Sem dúvida, a literatura, a filosofia, o teatro, as artes em geral, estão repletos de considerações a respeito deste paradoxo que parece inscrito no cerne da natureza humana: o fato de que a grandeza e a nobreza do homem convivem, em igual medida, com sua barbárie e crueldade. Mas, independente de haver aí alguma verdade, defendemos a tese de que aqueles que buscam verdadeiramente a nobreza e a beleza das ações e dos sentimentos (e não apenas a aparência deles) não são dados à crueldade e nem à exploração dos outros. Em outras palavras, este paradoxo humano também não pode servir de pretexto para legitimar a tirania.

Em suma, como se tudo isto ainda não fosse suficiente para nos fazer pensar, Porfírio diz algo ainda mais devastador sobre a nossa relação com os animais – sobretudo, os animais domésticos. Porfírio diz: “O homem mata o próprio amigo”. Ele mata aquele que confia nele. Em poucas palavras, a mesma mão que alimenta é a que fere mortalmente, como disse, muitos séculos depois, o pai da etologia moderna, Konrad Lorenz.

O que há, afinal, com o homem? Como nos tornamos seres tão insensíveis a ponto de não sentirmos qualquer compaixão por criaturas que sofrem como nós (independente de serem ou não criaturas que “pensam” como nós)? A pergunta que não quer calar é: como seres considerados mais evoluídos podem simplesmente desconsiderar o mal que fazem aos outros seres vivos (humanos ou não)? O que há com o homem, perguntamos outra vez? Por onde anda o ser racional, sublime e justo dos religiosos e dos filósofos? Não sabemos… mas, como o bom e sábio filósofo cínico Diógenes, não deixaremos de procurá-lo com a nossa lanterna.

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