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Contraponto – parte II – a missão

2 de dezembro de 2011
6 min. de leitura
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Desde o inicio das minhas aulas sobre ética animal (direitos animais e veganismo) há alguns anos, o corpo burocrático da escola onde leciono tem batido na tecla da necessidade de um contraponto. Como argumentei no texto “contraponto” [1] publicado aqui na ANDA, o que eles entendem por contraponto é a legitimação do status de coisas, de propriedades dado secularmente aos outros animais. Eles não entendem que diante de um ensino neoliberal reprodutor e legitimador da reificação da vida, quem se opõe a isso e apresenta um ensino onde as outras expressões de vida senciente são levadas em consideração e respeitadas pelo seu valor em si, é que faz o contraponto.

Defendem um ponto de vista biocida, e usam seu poder hegemônico para mantê-lo inalterável. É o ponto de vista especista e bem-estarista. Porém, através da educação vegana crítica, nós educadores veganos apresentamos a contraposição. Essa contraposição vegana vem imbuída de um único objetivo, uma missão: abolir todo e qualquer uso que a humanidade faz dos outros animais. Não aceitamos nenhum uso dos outros animais. Ponto. Isso nos dá o título de radicais.

No entanto, não somos encarados e tachados de radicais somente pelos especistas e bem-estaristas, muitos dos ditos defensores dos animais, até alguns que entraram sorrateiramente dentro do movimento de defesa dos direitos animais, que falam em nome dos direitos animais, nos classificam como radicais.

Bom, venho avisá-los que nós, ativistas e teóricos dos direitos animais, que temos o veganismo como nossa base moral, somos, sim, radicais. É isso que você leu: somos radicais.

Radical

* Etim.: Lat. Radix, raiz. Que vai até a raiz das coisas. [2]

* (do Lat. tardio radicalis) Que diz respeito à raiz das coisas, à sua natureza mais profunda, sem admitir restrição ou limite. [3]

* Que diz respeito à raiz, em qualquer dos sentidos desta palavra. Que vai até a raiz e, por conseqüência, que não comporta restrições. [4]

Em um texto escrito em 1973, intitulado “A filosofia na formação do educador”, Dermeval Saviani, diz que para uma reflexão possa realmente ser adjetivada de filosófica ela precisa de três requisitos: “ser radical, rigorosa e de conjunto”. Ou seja, qualquer problema colocado diante da filosofia deve ser posto “em termos radicais, entendida a palavra no seu sentido mais próprio e imediato. Quer dizer, é preciso que se vá até as raízes da questão, até seus fundamentos. Em outras palavras, exige-se que se opere uma reflexão em profundidade”. [5]

O problema posto é: a aceitação do ovolactismo como vegetarianismo, do abate humanitário como ético, da experimentação animal como um mal necessário, do aumento das baias de contenção como um avanço na libertação animal, da troca das gaiolas de baterias por um galpão, a troca de uma prisão aquática por outra maior, etc.

A reflexão radical exigida é: nenhuma forma de uso de pessoas de outras espécies se justifica eticamente. Se nos colocarmos na posição dos outros animais chegaremos a conclusão por analogia que eles não são tão beneficiados por ações bem-estaristas ou especistas eletivas como o senso comum imagina. A reflexão em profundidade que a ética animalista exige é devido ao fato de que a raiz do especismo é profunda demais.

“Mal o sabem, os que acusam os veganos de “radicalismo”, que na maior parte dos casos, quando se trata de viver de acordo com a ética, não há como fazê-lo a não ser de modo radical, quer dizer, indo à raiz das ações maléficas e malévolas e erradicando-as de sua existência. Nesse sentido, para orientar toda e qualquer decisão que envolve o risco de causar dano a qualquer ser senciente, evitando que tal dano, dor ou morte aconteçam, é preciso ter radicalidade, tanto na percepção do alcance da postura ética, quanto na vontade de guiar as ações no sentido de jamais ferir o princípio da não violência. Viver já é “muito perigoso” (Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas). A existência de um ser humano jamais deveria representar mais perigo ainda para outras vidas do que os inerentes à condição de quem nasce. Por isso, quando onívoros (os que comem de tudo sem qualquer preocupação com a ética em sua dieta) acusam os veganos de radicais, estão apenas cutucando-os para provocar neles reações emocionais desagradáveis, pois, em nosso país, ser radical passou a ser um defeito moral, desde os tempos da ditadura. Precisamos recuperar a radicalidade moral. Precisamos orientar nossa vontade por um princípio que não deixe dúvidas sobre seu valor abrangente e imperecível. O princípio da não violência (ahimsa para os hindus e tibetanos) nos dá a chance de traçarmos nossa biografia de modo radical, justamente para evitar que ao final dela sejamos queimados na pira dos cadáveres que nossa dieta impensada produz, ao consumirmos produtos que resultam do sofrimento e morte dos animais. Não há como ser ético sem seguir radicalmente um princípio moral.” [5]

Diante disso, educadores veganos de todo o país, uni-vos. Temos uma missão demasiadamente laboriosa, sermos a contra-hegemonia do sistema neoliberal especista e bem-estarista. Nossa missão é fazer o contraponto as formas declaradas e dissimuladas de exploração animal. E de maneira radical. Os princípios formais da ética exigem essa radicalidade.

Como se já não bastasse termos que lutar contra os especistas declarados, temos que contrapor também os pseudo-defensores dos outros animais. Esses últimos, os bem-estaristas, são incontestavelmente piores que os especistas assumidos, pois vendem para população a imagem de que são porta vozes dos animais. São os que se sentem ofendidos com o radicalismo dos veganos, às vezes até dizem que admiram os veganos por serem “espiritualmente evoluídos”, mas que ainda não chegaram lá; os veganos não precisam ser admirados como o supra-sumo da espécie humana, pois não são, ser vegano é um dever moral, dever que todo agente moral deveria ter ciência. Somos veganos, não hiperbóreos.

Usem essa “ofensa”, oriunda das verdades sobre a exploração animal ditada o tempo todo pelos veganos para saírem da sua zona de conforto. Sim, conforto, pois é esse o estado que os humanos se encontram – mesmos aqueles que se dizem sentir um mal estar por usarem produtos de origem animal de forma declarada – comparado com a situação que outros animais se encontram nas mãos de seus algozes.

Notas:

1. DENIS, Leon. Contraponto. Em: https://www.anda.jor.br/20/09/2010/contraponto
2. RUSS, Jacqueline. Dicionário de filosofia. São Paulo: editora scipione, 1994. p. 244.
3. JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. p 229.
4. LALANDE. André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 911.
5. SAVIANI, Dermeval. Do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez editora: Autores associados, 1991. p. 24.
6. FELIPE, Sônia. Ética e radicalidade. Em https://www.anda.jor.br/19/06/2009/etica-e-radicalidade

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