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O gato de Platão

28 de julho de 2011
5 min. de leitura
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Por Lucius de Mello
em colaboração para a ANDA

“Como um gato de dorso arrepiado, arrepio-me diante de mim.”
Clarice Lispector

Não é de hoje que eles descobriram a poesia dos telhados e fizeram dela sua melhor tradução. Guardam o vazio dos poetas e esticam, esticam o fio das horas até quebrá-lo. O tempo corre deles como um rato. A vida e a morte escondidas no buraco da humanidade. E eles ali… À espreita, matreiramente, prontos para se alimentar de voo. Bebem cada gotinha de Deus sobre o pires. Lambem o sagrado até o talo. Seus passos não deixam eco… Sonham com cisnes e, mesmo de beco em beco, alimentam o desejo de cruzar as naves das catedrais num grand jet

Conhecem todas as metáforas, e preferem ter pensadores como mordomos por que nestes estão as mais profundas fontes de silêncio, o ouro do reino das entrelinhas onde são soberanos. Rolam memórias sobre o tapete, preguiça com sabor de atum, e se entregam aos bocejos ao primeiro sinal de um poeta teimoso que insista na busca da palavra original.

Malandro sutil das favelas, se a morte tem cara de cano de fuzil, morrem promovendo o veloz e mortal projétil ao saboroso posto de passarinho…

Fazem amor como se cantassem ópera. Protagonizam árias únicas e raras, sob o céu negro de onde despenca o maior lustre do mundo, todo iluminado de estrelas. Mascarados fantasmas, profetas das tragédias, guardiões do portal do inferno, mitológicos seres a serviço dos deuses do Olimpo… Será que o gato de Platão filosofava em ronrons?

Gatos marcados para morrer envenenados porque transam sempre como se fosse o último orgasmo. Mensageiros de Vênus, esses felinos do amor. Que lobo, que nada! Roma nasceu de um gato, não é Julio Cortázar?

“E de repente numa viagem qualquer você encontra um monte de gatos, e percebe que Roma é também um grande gato amarelo, que de dia anda devagarzinho fantasiado de Tibre, e de noite se enrosca e dorme e é o Coliseu.”

Pego carona nessa imagem cortaziana e vejo a arena milenar lambendo-se e se espreguiçando, protagonista de um show egocêntrico temperado com deleite e olhares blasés… O prédio histórico incorporado pela frescura de um inofensivo gato amarelinho.

Em Paris, Cortázar também trabalhou para um bichano proustiano. Ele escreveu ao amigo Eduardo na noite do dia 24 de fevereiro de 1952: “ […] estou descansando um pouco, sozinho em meu quarto, depois de uma semana cheia de coisas, idas e vindas, experiências curiosas… […] Tenho aqui comigo um gatinho, que preciso alimentar e abrigar, pois é o filho coletivo dos moradores do terceiro andar. (Há uma semana que eu o salvei de morrer gelado na neve, e em reconhecimento o dito-cujo lambeu de tal maneira um pulôver meu que estava ao pé da cama que o estropiou para sempre)”.

Em seu conto Orientação dos gatos, o narrador criado por Cortázar deixa-se seduzir como um voyeur pelos carinhos trocados entre a mulher amada Alana e o gato Osíres:

“Quando Alana e Osíris me olham não posso queixar-me da menor dissimulação, da menor duplicidade. Olham-me de frente, Alana sua luz azul e Osíris seu raio verde. Também entre eles olham-se assim, Alana acariciando o lombo negro de Osíris, que levanta o focinho do prato de leite e mia satisfeito, mulher e gato conhecendo-se desde planos que me escapam, que minhas carícias não conseguem ultrapassar. Faz tempo que renunciei a qualquer domínio sobre Osíris, somos bons amigos a partir de uma distância infranqueável; […] quando Alana voltava para mim a cabeça o triângulo já não existia, ela havia ido ao quadro mas não estava de volta, continuava ao lado do gato olhando para além da janela onde ninguém podia ver o que eles viam, o que somente Alana e Osíris viam cada vez que me olhavam de frente.”

E como esquecer da deusa Lady Bi, de Haroldo de Campos:

Lady Bi 2

a gata lady bi
(né bichana)
fixa-me os olhos de esmeralda líquida
seu pelame – casco-de-tartaruga –
ruivo-ouro e negro-pelúcia
contra fundo branco brilha
e muda
(patas prenseis segurando o ar)
fala-me
mudez entrecortada de arrulhos
– plena –
como um discurso amoroso

Angélicos, como quis T.S. Elliot… Ou mais ao estilo de Edgar Alan Poe… Nos livros, na Broadway, no cinema, tantos outros poetas e escritores se curvaram diante da sua majestade, o gato:

“Cães pensam que são homens, gatos pensam que são Deus”, já dizia a polêmica escritora francesa Sidonie Gabrielle Colette. Pensamento que foi compartilhado por Pablo Neruda: “Só o gato aparece completo e orgulhoso.”

No sertão roseano, o olhar felino foi farol: “Eu estou só. O gato está só. As árvores estão sós. Mas não o só da solidão: o só da solistência…”, escreveu o pai de Diadorim.

Cecília Meirelles também sucumbiu aos ronrons: “Brota nos seus olhos erguidos o arco-íris, resumo do dia”.

Lygia Fagundes Telles fez do gato Raul narrador em seu romance As horas nuas.

“O gato apenas sorri no ligeiro movimento de baixar as orelhas e apertar um pouco os olhos, como se os ferisse a luz. Esse é o sorriso do gato – ô bicho sutil! Indecifrável. Inatingível”, escreveu Lygia.

E poetou Mário Quintana: “Os gatos, moles de sono, rolam laranjas de lã”.

Já o mestre Machado de Assis mirou bem seu pince-nez e proclamou: “O gato que nunca leu Kant é talvez um animal metafísico”.

Lucius de Mello é escritor , jornalista, mestrando em Literatura Hebraica (USP) e Pesquisador do LEER – Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da Universidade de São Paulo. Foi finalista do Prêmio Jabuti em 2003 com a biografia Eny e o Grande Bordel Brasileiro,- Ed. Objetiva. Também é autor do romance histórico A Travessia da Terra Vermelha – Uma Saga dos Refugiados Judeus no Brasil e do romance Mestiços da Casa Velha.

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