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Livro defende o respeito aos animais como um aprendizado de humanidade

14 de maio de 2011
9 min. de leitura
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Seja na metamorfose de um jovem em inseto ou no profundo mergulho interior de uma dona de casa ao encarar uma barata no armário, as artes e a literatura sempre tentaram esgarçar as grades com as quais a ciência e o comportamento antropocêntricos separam os homens das outras espécies. Meninos-pássaros, homem-jangada, esposas vegetais, mulher-pantera, pergaminho humano, matrix, avatares, indivíduos biônicos, água-viva: o homem sempre experimentou existências híbridas no plano do imaginário, fruto do contágio e da contaminação.

Essas experimentações do imaginário finalmente ecoaram para a ciência. Só no século 20 e, sobretudo, neste século, quando as fronteiras entre o animal, o humano e a máquina foram mais seriamente tensionadas, parte emergente dela decidiu colocar em xeque os parâmetros em torno do conceito de humano com base no que supunha saber sobre os animais e outras espécies.

Livro vai ser lançado pela EdUFSC, na segunda-feira

Fruto de uma parceria entre a EDUFSC e a Fapemig, a obra Pensar/Escrever o Animal – Ensaios de Zoopoética e Biopolítica vem a público com esse propósito. O lançamento em Florianópolis está marcado para a próxima segunda-feira, às 17h, no Centro de Cultura e Eventos da UFSC, como parte das comemorações dos 30 anos da editora.

Organizada pela professora da Universidade Federal de Minas Gerais Maria Esther Maciel, a obra é a primeira publicação no Brasil que expressa o pensamento contemporâneo multidisciplinar em torno de uma das questões mais emergentes da atualidade: a superação do antropocentrismo.

O movimento de animalização do ser humano na literatura e nas artes não é atribuído por esses filósofos à inferiorização metafórica dos animais, nem a uma mera apologia da natureza, mas antes a uma necessidade visceral e recalcada de libertar o próprio homem das amarras de ser homem oprimindo as outras espécies.

Como você situa, dentro do pensamento contemporâneo, o movimento inserido nessa obra que se propõe a refletir sobre as questões da animalidade?

Maria Esther Maciel – Ela parte de duas instâncias: de um lado, a reflexão sobre animais e a animalidade; de outro as relações entre humanos e outras formas de vidas. Esse tema tem estado em evidência em vários campos do conhecimento, sobretudo na Europa, América do Norte e Austrália, onde é uma questão muito viva. Envolve estudos na área de zoologia, filosofia, literatura, artes, antropologia, ecologia que compõem um novo campo multidisciplinar chamado Estudos Animais. Esse livro é uma primeira tentativa de colaborar para a construção desse campo de estudos no Brasil. É o primeiro livro que busca essa abordagem transdisciplinar da questão animal dentro do pensamento contemporâneo.

Quem são os precursores desse pensamento?

Maria Esther – Derridá, com seus antológicos escritos sobre o animal. As abordagens bioéticas de Agamben, com O Aberto, e Peter Singer, autor de A Libertação Animal. Deleuze, com a ideia de que o homem carrega um devir-animal. Foucault, ao propor a relação entre animal e loucura, o Georges Bataille e a exploração do erotismo, o conceito cyborg de Donna Haraway, enfim, autores de diversas áreas que realizaram estudos importantes sobre animalidade e as relações entre humano e animal e que ajudam a compor essa crítica na direção de um pensamento pós-humano.

O que estaria no âmago do antropocentrismo?

Maria Esther – Trata-se de um sentimento de soberania e superioridade humana, que leva à inferiorização das demais espécies, promovendo a associação dos “outros humanos” aos “outros animais”. O antropocentrismo hierarquiza e tiraniza por sua potência não só as espécies diferentes, mas os próprios humanos, subjugando os que são tidos como inferiores e por isso podem ser mortos. O poder soberano delibera sobre a vida e a morte desses grupos de pessoas relegadas ao lugar de prisioneiros de guerra, como fez o nazismo, como faz o imperialismo, ao anular esses seres humanos associando-os aos animais. Em síntese, a maneira como o homem soberano trata os animais, na qual tudo é permitido, é transposta para as relações humanas nesse exercício de poder em que se pode dispor da vida do outro e determiná-la.

O que há de novo nessa retomada da crítica ao antropocentrismo e à racionalidade humana?

Maria Esther – Pela primeira vez estamos nos deixando perturbar pela presença do animal. Nessa “reviravolta animal”, estamos deixando que surja esse outro do próprio homem que foi excluído, desprezado, em nome da máquina antropocêntrica.

Aliás, a questão da animalidade ganhou impacto quando o filósofo francês Jacques Derridá publicou O Animal que Logo Sou.

Maria Esther – Derridá começou este livro a partir da perturbação pessoal que lhe causava o olhar de seu gato, e chamando a atenção para o fato emblemático de que até então a filosofia ocidental nunca havia refletido sobre como pode o animal olhar o homem… Derridá faz uma crítica radical a uma linhagem da filosofia em que se inscrevem Aristóteles, Descartes, Heidegger, Levinás, que analisa o homem partindo de um ponto de vista antropocêntrico para falar da importância dessa questão para a filosofia contemporânea no sentido de desestabilizar um conceito clássico de humanismo que se tinha como justo e igualitário.

Afinal, por que a humanidade precisa pensar sua animalidade?

Maria Esther – Aproximar-se do animal é se tornar mais animal. Amar os animais é um aprendizado de humanidade. O homem pode se pluralizar com essa relação. É a forma mais radical de alteridade. Recuperar a animalidade é o sentido de recuperação do humano, porque o animal não se dissocia da humanidade. Há certa necessidade atávica de recuperar uma animalidade perdida.

E como você vê a emergência política dessa temática para a sociedade como um todo?

Maria Esther – De um lado, há uma questão contextual concreta, relacionada às grandes catástrofes ecológicas a despertarem a consciência em relação à natureza e ao equilíbrio entre todas as formas de vida. Por outro, a própria crise do conceito de razão como elemento dissociado, diferenciador próprio do humano, capaz de dar a ele o poder sobre as demais espécies. Estamos vivendo uma crise da filosofia da maneira de pensar nosso ser e estar no mundo em relação ao que nos cerca.

Em síntese, quando e como a ciência estabeleceu a cisão entre homens e animais?

Maria Esther – É difícil dizer porque animalidade não é algo que se possa definir com precisão. A cisão se deu muito em cima do triunfo da razão em cima de marcas humanas diferenciadas e que poderiam justificar o domínio de um sobre o outro. Essa cisão deixou o humano desprovido de algo que é inerente a nossa condição animal e pode nos melhorar na nossa relação com o outro. O ser humano não tem ainda a consciência de que faz parte de uma comunidade híbrida interespécies. Essa consciência passa pelas questões ecológicas, mas também pela crise da ideia de humano em função das novas tecnologias, da vida artificial, das próteses que funcionam como extensões do corpo e provocam uma crise no conceito de humano enquanto espécie separada das outras formas de vida.

Em grande medida, tudo o que a ciência definiu sobre o homem o fez em contraste ao que pressupõe como suas vantagens sobre o animal. Mas nós sabemos quem é o animal?

Maria Esther – Somos totalmente ignorantes em relação ao animal, que é um estranho por excelência, pois como imaginar o que o animal sente, pensa ou é? Não há linguagem em comum que permita esse conhecimento. Os estudos da animalidade estão atentos às descobertas recentes da etologia sobre as qualidades dos seres humanos em termos de inteligência, de sensibilidade, de atributos que eram tidos como humanos. Hoje esses estudos de comportamento do animal têm revelado propriedades impressionantes nos animais.

Inclusive no campo da linguagem, que é um limite demarcado como o que distingue o humano por excelência?

Maria Esther – Sim, há um campo exploratório pensando o animal também como um ser de linguagem. É o campo da zoossemiótica, que está em expansão no leste europeu, com imbricações na linguística e na semiótica. Ver o animal também como um ser de linguagem abre uma perspectiva de nos relacionarmos com o outro de uma maneira menos violenta e mais igualitária.

A ciência e o pensamento cartesiano ocidental se sustentam na distinção do humano, mas a literatura, as artes, as culturas pagãs e primitivas nunca se restringiram a essa prisão do homem como um ser absoluto que domina o mundo. São povoados por personagens e figuras míticas que experimentam formas híbridas entre humanos, animais, vegetais, máquinas…

Maria Esther – Sim, inclusive através da literatura é possível traçar a história do animal e de sua relação com o homem. Desde as fábulas de Esopo, desde os gregos antigos, os animais aparecem com muita força antropormofizados, alegorizados, metaforizados ou como personagens merecedores de respeito e de espaço como arquétipos positivos ou negativos. Em geral, a literatura ficou muito voltada para a metáfora pejorativa ou fantástica do animal. Mas o animal sempre usado como metáfora do humano, como ponto de partida para um projeto humano, o homem sempre no foco. Desde os gregos, passando pela idade média, o animal foi colocado a serviço do humano. A mudança de parâmetro se deu na idade moderna em função de Darwin, da teoria darwiniana que questiona o criacionismo e marca as origens animais do homem. Depois, os avanços da ciência do animal fizeram com que aparecesse como um ser pleno em si mesmo (e não apenas como primitivo do homem) e aí aparece na literatura uma tentativa de exercitar a animalidade.

Paralelamente, há um movimento de exclusão e demonização da animalidade nos séculos 18 e 19.

Maria Esther – De fato, isso tem a ver com uma mentalidade religiosa muito puritana de sacralização da espécie humana. O catolicismo oficial contribuiu muito para a renegação do animal e para a fixação desse estigma que o relega à inferioridade, violência, irracionalidade, loucura, sexualidade, perversão. Os animais são os que não têm alma. Esse especismo religioso teve repercussão simbólica na literatura, com o surgimento dos monstros, híbridos entre formas humanas e animais do século 19, revelando uma animalidade recalcada, que vem do imaginário como monstruosa e ameaçadora. O que na verdade é um retorno a um momento da Idade Média em que a repressão do catolicismo à animalidade e aos mitos pagãos provocou essa composição monstruosa e recalcada do animal. Hoje os vampiros e os lobisomens retornaram à cena na ficção literária e cinematográfica, mas esvaziadas de sua animalidade.

Você acredita que um dia olharemos para trás e pensaremos na relação predatória em grande escala que temos com os animais sentindo a vergonha e a perplexidade que hoje temos ao examinar crimes naturalizados no passado, como a escravidão dos negros pelo ocidente?

Maria Esther – Acho uma expectativa um pouco utópica. Infelizmente, minha expectativa é que em breve não haverá mais animal enquanto um outro que proporciona uma experiência radical de alteridade. Os que vão persistir são os do zoológico e para produção de alimentos, numa reprodução em série e cruel, dentro do pior do sistema capitalista. Acredito que de um lado haverá uma destruição avassaladora da vida animal selvagem e livre, em paralelo à humanização excessiva dos animais domésticos e, por outro, essa produção massiva de viventes em condições bárbaras, seres de vida curta e programada, nascidos para serem mortos deliberadamente.

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