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Roberto & Erasmo

3 de maio de 2011
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Esta crônica, embora não pareça, tem a ver com arte e direitos dos animais. Juro pela alma da titia Amélia. Sua motivação é antiga, remonta aos longínquos anos 70, à lembrança daquelas tardes botucatuenses para sempre impregnadas em meu ser, época em que rádios de pilha tocavam, quase sem parar, sucessos de Roberto & Erasmo Carlos. Esta dupla, aliás, chegou até ser chamada de Lennon & McCartney tupiniquim.  Não vamos exagerar, é claro, mas também não podemos negar os méritos da mais famosa parceria musical brasileira. Se bem que toda vez que falo em Roberto e Erasmo sinto que me carimbam na testa cinco letras garrafais em seqüência maldosa, cinco letras que os leitores e as leitoras já podem adivinhar quais são: B.R.E.G.A. Pouco me importa. Afinal, muitas canções deles passaram a habitar o inconsciente coletivo (e o meu, inclusive), repercutiram no país todo, embalaram sonhos de muita gente.  Naquele tempo, aliás, era impossível aparecer alguém que nunca tivesse ouvido “Sentado à Beira do Caminho”, “Sua Estupidez”, “Detalhes”, “Como Vai Você?”, “A Distância”, “Debaixo dos Caracóis dos seus Cabelos”, “Palavras”, “Como Dois e Dois” ou então a clássica “O Portão”, em que a voz melancólica de Roberto canta o regresso de uma longa ausência, diante da espontânea alegria de seu cão: “Eu parei em frente ao portão, meu cachorro me sorriu latindo”.

Sempre tive curiosidade em saber, nas célebres parcerias em que dois compositores assinam a obra, quem fez o que. Com Lennon & McCartney isso é fácil distinguir. Mas em relação a Roberto & Erasmo até hoje não vi nenhum crítico ou jornalista que se atravesse a fazer esta pergunta essencial, mesmo porque o processo criativo raramente se dá a quatro mãos. Acontece muito, nesses casos, de um fazer tudo e o outro apenas assinar, ou então dividirem a tarefa um com letra e outro com música.   Polêmicas à parte, o fato é que eu, por conta própria, tive de tirar minhas conclusões. Não sei exatamente quem compôs o que, mas a principal pista está no jeito de ser de cada parceiro.  Vou antecipar aqui algumas dicas: Roberto é intuitivo, Erasmo é técnico. Roberto é mais cantor, Erasmo mais compositor. Roberto é introspectivo, Erasmo é extrovertido. Roberto tem feição lírica, Erasmo é mais de ação. Roberto é mestre na interpretação, Erasmo mais músico. Roberto é do amor romântico, Erasmo do amor arrebatado. Mas falta uma pergunta: em termos de preocupação ecológica, qual deles se distingue?

Se alguém responder Erasmo, direi que acertou. É dele, aliás, um raro LP batizado Projeto Salvaterra, de 1974. Em seguida a este disco o Tremendão lançou um compacto contendo uma canção que, a meu ver, foi aqui pioneira em tratar de temas ambientais. Chama-se “Panorama Ecológico”, música dotada de belíssima harmonia e com uma mensagem poética para lá de inspirada: Lá vem a temporada de flores/ Trazendo begônias aflitas/ Petúnias cansadas, rosas malditas/ Prímulas despetaladas/ Margaridas sem miolo/ Sempre-vivas quase mortas e caravinas tortas/ Odoratas com defeitos e homens perfeitos/ Lá vem a temporada de pássaros/ Trazendo águias rasteiras/ Graúnas malvadas, pombas guerreiras/ Canários pelados, andorinhas de rapina/ Sanhaços morgados e pardais viciados/ Curiós desafinados e homens imaculados/ Lá vem a temporada de peixes/ Trazendo garoupas suadas/ Piranhas dormentes, sardinhas inchadas/ Trutas desiludidas, tainhas abrutalhadas/ Baleias entupidas e lagostas afogadas/ Barracudas deprimentes e homens inteligentes.

Mas se alguém disser que Roberto pelo menos uma vez em sua carreira contribuiu para a conscientização ecológica, também acertou. É que em 1981 ele deu voz aos ambientalistas no protesto contra o massacre das baleias que acontecia livremente no litoral brasileiro.  O resultado disso foi uma canção intitulada “As baleias”, que, apesar da letra pobre (“Seus netos vão te perguntar em poucos anos/ pelas baleias que cruzavam oceanos/ que eles viram em velhos livros ou nos filmes e arquivos/ dos programas vespertinos de televisão”), contou com um arranjo musical eficaz, de Erasmo, tornando-se um estrondoso sucesso nacional. Tanto repercutiu essa melodia que, em 1987, a Assembléia Legislativa aprovaria a Lei dos Cetáceos, proibindo de vez a pesca da baleia ou seu molestamento em nosso mar territorial. Ouso até dizer que, se a caça dos cetáceos acabou no Brasil, isso se deve à ação dos nossos combativos ecologistas da época e, sobretudo, à música de Roberto Carlos. Isso demonstra o poder da arte popular. E olha que a cantoria militante de Roberto não parou por aí.  Na música “O Progresso”, daquela época, uma das frases cantadas por ele, em tom de desabafo em relação aos desmandos da humanidade, era instigante: “Eu queria ser civilizado como os animais”.

É triste constatar que, nos dias de hoje, poucos são os artistas engajados com grandes causas. Não me considero moralista e nem um pouco preconceituoso, mas a maioria do repertório popular atual é de desanimar.  Embora eu respeite todas as tribos e todos os sons, causa-me aflição ouvir a trilha sonora que dez entre dez DJ põem para tocar nas festinhas infantis, onde o que agrada as pessoas – crianças, pais e até mesmo avós – são ritmos com letras maliciosas e acompanhadas de danças lascivas. Parece que agora o chique é ser vulgar em um mundo hedonista que celebra a imbecilidade coletiva.  Meu deus, o que será das ideologias quando essa criançada crescer?  E eu é que pensava, antigamente, que certas canções de Roberto & Erasmo eram bem ousadas na linguagem do amor. Quando torno a ouvir “Proposta”, “Amada Amante”, “Seu Corpo” ou “Cavalgada”, vejo como elas são inocentes se comparadas à balbúrdia de mau gosto que hoje em dia alegam ser música. Diabos, será que estou me tornando um Velho Moço?

Mas nem tudo está perdido, podem crer. É que a dupla Roberto & Erasmo deixou alguns herdeiros de grande talento e sensibilidade. Dentre seus admiradores arrisco citar os mais recentes: Fernanda Takai, Zeca Baleiro, Adriana Calcanhoto, Nando Reis, Rodrigo Amarante…  Já pensaram se eles decidem usar a voz em favor dos animais? Uma canção de sucesso que fosse, qualquer coisa, seria bom demais. Digo isso porque outros artistas famosos, da geração anterior, tiveram essa oportunidade mas nunca demonstraram coragem de assumir para valer a bandeira ecológica ou animalista. O que nos resta, então, é esperar os novos e bons ventos. Em termos mundiais, Paul McCartney fez a sua parte ao se declarar publicamente vegetariano pela causa animal. Também por isso é que, desta vez, não perderei de jeito nenhum o show que ele fará em breve no Rio de Janeiro. Juro pela alma da dona Candinha…

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