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Neste Natal como em todos os dias

26 de novembro de 2010
4 min. de leitura
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Não é um bom ponto de partida julgar que quem come carne, veste lã e vai ao zoológico são pessoas más. Que têm intenção de afrontar a ética. Percorro a lista de pessoas que conheço, com quem convivo, familiares, colegas de trabalho, meus adoráveis vizinhos no pequeno reduto do Centro Histórico de Porto Alegre onde moro há uns dois anos. Desta lista, seleciono aqueles a quem mais admiro, os que mais presenteiam seu entorno com atos generosos, aqueles que vejo distribuindo delicadezas, opiniões sensatas, que têm uma forma de ser e de viver que agrega, que contribui, que se cerca de alegria e de leveza. Pessoas inteligentes, bem humoradas, espirituosas, capazes de citar bons autores no momento certo, que têm uma palavra de conforto na ponta da língua. Sensíveis a campanhas solidárias, dispostas a oferecer horas de trabalho, fruto de ganhos para anonimamente minorar o sofrimento de alguém que nem conhecem. Não estão preocupadas em inscrever seu nome na história de nenhum movimento, mas aceitam de bom grado transferir seu dízimo a quem mais precisa.

Revejo a lista e percebo que não são vegetarianas. Já receberam a mensagem do veganismo na sua perfeita acepção, uma opção de vida factível que afeta o mínimo possível as vidas animais. Essas pessoas não perguntam pela alface, não duvidam de que me faltem proteínas e ferro, não falam em evolução humana pós-caça, não evocam a tradição, não recorrem à cadeia alimentar, sequer duvidam de que animais deveriam ser sujeitos de direitos.

Noto, também, que tais pessoas, a quem admiro (mais do que a muitos veganos desta cidade), têm extrema dificuldade de mudar hábitos que lhes fazem mal, direta ou indiretamente. Algumas são sedentárias, fumam, abusam de alimentação gordurosa, são imprudentes no trânsito, não fazem exames de saúde periódicos e, como eu, fogem do dentista até o limite da dor.

Alguma coisa simplesmente não funciona. É como se houvesse falha em um neurotransmissor e uma ligação deixasse de acontecer. Há um fosso entre duas regiões: numa delas, a disposição para a bondade e para o reconhecimento de direitos e, na outra margem, os animais clamando por essa bondade e por esses direitos.

O fosso, talvez, se dê por esta dificuldade de mudar, até naquilo que nos beneficia pessoalmente.

Domingo é dia de Páscoa, vou matar o carneiro. A frase foi ouvida por Domingos Pellegrini, que no conto memorialista Ovo de Páscoa, é um menino a rememorar a casa dos avós, onde travara amizade com o carneiro e via chegarem ao fim as ilusões infantis: o coelho de páscoa não existia e o carneiro precisaria deixar de existir. Nós diríamos que o carneiro poderia continuar vivo, mas a estrutura do conto se dá no sentido de demonstrar como, apesar do sentimento provocado pela morte do carneiro em todos os personagens, menos no Nono, o guardião da cultura, não existiria hipótese possível que não a morte do carneiro, companheiro de pátio das crianças e da Nona. O conto demonstra a força da cultura forjando o homem no menino, deixando pouca margem para que, apesar de todo o sentimento de solidariedade ao carneiro,  alguma coisa mudasse.

Na tentativa de levar a mensagem dos direitos animais e do veganismo, diferentes estratégias vêm sendo utilizadas no nosso país, conforme os diferentes entendimentos dos grupos organizados. Há quem defenda o confronto com o inimigo, grupo que inclui as pessoas a quem me referi antes e, além delas, a indústria de exploração animal e seus lucros. Há quem aposte no exemplo e no diálogo, na racionalidade opondo-se à tradição.

De muitos modos, em Porto Alegre, marcamos com manifestações datas especiais como o Dia Internacional dos Direitos Animais, campanha em Páscoa, em dia de finados (em frente a uma famosa churrascaria, choramos os animais que encontrariam seu túmulo no estômago dos frequentadores), seminários, grupos de estudos, exibição de vídeos em espaços abertos e fechados, passeios ciclísticos. Publicamos artigos em jornais de maior circulação no Rio Grande do Sul, fizemos debates em Universidades. Não temos como medir o efeito de tais ações, só contamos com nossos desejos ou intuições.

Nos últimos finais de ano, cobrimos alguns pontos da cidade com cartazes apelativos: Neste Natal, Não Coma o Presépio… e nem nos outros dias: torne-se vegetariano. O slogan, Neste Natal Não Coma o Presépio, foi sugerido por uma dessas amigas, que tem irmão e cunhado veganos, mas não abre mão de sua dieta tipicamente sulista.

Num certo sentido, a campanha deu bons resultados ao divulgar a contradição entre o espírito de bondade natalino e o martírio provocado aos animais na celebração da data. Passados meses do Natal, ainda chegavam a nós comentários da campanha. Entre sensibilizar-se e mudar vai uma longa distância que só os muito otimistas percebem pequena ou média.

Qualquer manual de comunicação diz que existe o emissor, o receptor e a mensagem. Identificar onde está a falha, se no emissor, no receptor ou na mensagem, exige algumas condições que nem sempre aparecem claramente ao movimento de defesa animal: mais autocrítica, menos autopropaganda e mais visão estratégica exógena. Se, porém, a humildade não perpassa os três pontos, corre-se o risco de não perceber o real, e sua força reproduzida em cultura, sem os perturbadores filtros da vaidade.

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