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O paradoxo do Iluminismo – Parte II – Alienação moral

21 de julho de 2010
26 min. de leitura
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No texto anterior mencionei aquilo que considero o principal paradoxo do mundo atual: enquanto as filosofias políticas contemporâneas professam a dignidade inerente do indivíduo, aparentemente nem todos os indivíduos são tidos como merecedores de tal dignidade, e o respeito daí advindos. Tentarei discutir esta questão com base nos conceitos de alienação moral, pelo qual um indivíduo se vê excluído da comunidade moral, e dissociação moral, pelo qual um indivíduo é incapaz de enxergar no outro as semelhanças que determinam a participação nessa comunidade moral.

Alienação moral, autoridade e obediência: dois experimentos psicológicos

Hoje parece haver um genuíno consenso sobre quais deveres temos com nossos semelhantes, e quais direitos eles possuem; contudo, nós sistematicamente ignoramos nossos deveres e os direitos alheios. Poucas pessoas hoje concordariam com as práticas de tortura medievais, ou com o assassinato injustificado, ou as guerras de conquista, ou a escravidão humana. Não obstante, nos porões das prisões ainda se tortura e executa, as guerras ainda são promovidas e ainda há seres humanos vivendo em situações análogas à de escravidão.  Ainda há racismo, sexismo, todo tipo de preconceito e violência física e moral. Ainda há fome, injustiça e pobreza.

E, o que é mais desalentador, esse estado de coisas não é apenas da responsabilidade dos governantes. É responsabilidade da maioria de nós – porque nós em geral elegemos nossos governantes, compomos os exércitos, puxamos o gatilho e apertamos o garrote. Os crimes contra a humanidade praticados por tiranos e genocidas não apenas contam com a participação ativa de contingentes significativos da população, mas também dependem deles. Nenhum tirano mata com as próprias mãos, nenhum tirano mata sozinho. Mesmo os regimes autoritários contam, no mínimo com a resignação de uma maioria e a participação ativa de uma minoria que exerce a força para manter o controle social.

Duas experiências clássicas da psicologia demonstram de forma vivaz e assustadora o problema do abuso de poder e seu corolário, expressos na clássica alegação do oficial nazista Adolf Eichmann, que foi a peça fundamental de sua defesa em seu julgamento pelos crimes cometidos nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial: “eu apenas cumpria ordens”. São os crimes de obediência.

Em 1961, na Universidade de Yale, o psicólogo Stanley Milgram fez a seguinte experiência: ele dividiu um número de voluntários em dois grupos. Os indivíduos do primeiro grupo iriam fazer o papel de examinadores, testando as respostas dos indivíduos do segundo grupo. Os “examinadores” eram instruídos a aplicar choques elétricos nos “examinados” sempre que estes erravam as respostas. Os “examinadores” desconheciam dois fatos: primeiro, que os choques não eram efetivamente aplicados; segundo, que os “examinados” foram instruídos a errar propositadamente, a simular a dor da aplicação dos choques, implorar pelo fim do experimento e, por último, simular a perda de consciência, à medida que a voltagem dos choques era aumentada.

Era tudo encenado. Sem saber disso, 62,5% dos “examinadores”, instruídos pelo pesquisador, que os persuadia insistindo na relevância da experiência e a importância de levá-la até o fim, obedeciam às regras do experimento e aplicavam o que, na sua percepção, eram choques cada vez mais intensos e potencialmente fatais – advertência que aparecia no painel nas escalas mais altas de intensidade. Em alguns casos, o pesquisador os persuadia declarando que assumia total responsabilidade pelas consequências. Assim, os voluntários entendiam que não seriam mais responsáveis pelo dano causado ao voluntário, por mais grave que fosse. O que esse experimento demonstra é o poder que a autoridade tem de forçar os indivíduos a suplantar regras morais em prol da obediência [1].

Em 1971, o também psicólogo Steven Zimbardo comandou outro tipo de experiência sobre autoridade e obediência. Ele selecionou, aleatoriamente, 24 voluntários, e os separou, por sorteio, em dois grupos que iriam simular as condições de uma prisão: doze “guardas” e doze “prisioneiros”. Todos foram esclarecidos de que a experiência era voluntária e eles poderiam desistir em qualquer momento. Nove de cada grupo participariam ativamente da experiência, e os demais ficariam de “reserva” para o caso de desistências. Os “guardas” se revezariam em três turnos com três “guardas”. O experimento deveria durar duas semanas.

Desde o primeiro dia, as “condições” da “prisão” começaram a deteriorar, os “guardas” manifestando uma clara tendência a abusar de sua autoridade. Ao fim do primeiro dia houve uma rebelião. Quando a rebelião foi debelada, os “guardas” jogaram os “presos” uns contra os outros, pela concessão de privilégios. Com o passar dos dias, verificou-se uma escalada de brutalidade no comportamento dos “guardas”: aprisionamento em “solitárias”; castigos degradantes; piora nas condições de higiene; remoção dos colchões; humilhações, assédio moral.

O mais estranho: os “prisioneiros” também incorporaram seus papéis. Em pouco tempo, os “presos” submeteram-se e a dinâmica de privilégios e punições acabou com a solidariedade entre eles. Depois de um tempo, os voluntários estavam tão perturbados que acreditavam que a experiência era real, e que não seriam libertados. Os pais dos “prisioneiros”, no dia de “visitação”, tampouco exigiram a “libertação” de seus filhos. Em vez disso, tentaram “negociar” melhores condições de tratamento. Até a concessão de “condicional” foi simulada. Apenas dois voluntários abandonaram a experiência – um deles, apenas porque foi persuadido pelo próprio pesquisador. O “prisioneiro” que lhe tomou o lugar iniciou uma greve de fome, e por isso foi isolado na “solitária”. Os demais “prisioneiros” se voltaram contra ele: quando um “guarda” negociou a sua saída da “solitária”, contanto que os demais abrissem mão do lençol de dormir, a resposta dos demais foi negativa. Nas palavras do Dr. Zimbardo:

No final do nosso estudo os reclusos encontravam-se desintegrados, tanto como grupo como a nível individual. Já não existia mais qualquer sentido de unidade de grupo; apenas um grupo de indivíduos isolados que aguentavam o melhor que podiam, como acontece em muitos casos com prisioneiros de guerra ou doentes mentais hospitalizados. Os guardas tinham conquistado o controlo total da prisão e comandavam a obediência cega de cada recluso. [2]

No fim do sexto dia, a experiência prevista para durar 14 dias foi abandonada, por interferência externa – a noiva do pesquisador. O experimento saíra de controle. Muitos “prisioneiros” apresentavam distúrbios que, se prolongados, poderiam causar-lhes danos psicológicos permanentes.

Muitos questionam a validade científica desse experimento. Contudo, ele demonstrou a força da autoridade num sentido distinto da pesquisa anterior: diferente daquela, os “guardas” não foram instruídos a impor castigos e humilhações. Eles o fizeram por iniciativa própria. Os “prisioneiros”, após resistência inicial, não só se submetiam, como se voltavam uns contra os outros. Se o experimento de Yale demonstra a submissão do agressor à autoridade, o experimento de Stanford demonstra a submissão da vítima, e ao mesmo tempo o poder corruptor da autoridade – a tentação de abusar do poder.

No ato do exercício da violência, experimentamos uma dissociação moral em relação ao paciente moral, isto é, o indivíduo que sofre os efeitos a ação: ele deixa de ser visto como digno dos direitos que geralmente atribuímos a nossos semelhantes – justamente porque não o vemos mais como um semelhante. Estrito senso, ele deixa de existir como indivíduo. Deixa de ser um sujeito para tornar-se um objeto [3]. A minha hipótese é que essa dissociação que leva à alienação moral está intimamente associada a uma visão de mundo hierárquica, evidente nos casos de crimes de obediência, mas que não se encerram neles – como testemunha a forma como exercemos a violência sobre os animais não humanos.

Alienação moral na nossa relação com os animais

A alienação moral que parece pautar nossas relações humanas, fica ainda mais evidente na nossa relação com os animais. Perguntados se concordam que temos deveres para com os animais, se eles são merecedores de respeito e se suas vidas têm algum valor inerente, a maioria de nós responderá que “sim”. Poucos veriam uma pessoa agredir um cão ou gato na rua, por exemplo, e concordariam que este é um comportamento aceitável ou moralmente justo (ou neutro). Contudo, a maioria de nós consente que isso seja feito a outros animais, se existe aquilo que julgam ser uma “boa justificativa” para isso. Eu diria que nossa conduta perante os animais evidencia as três atitudes relativas à autoridade acima descritas:

[1] A submissão passiva ao poder da autoridade – se nos for dito que é necessário torturar e matar animais em nome da ciência, ou da nutrição, nossa tendência será de não questionar a autoridade e, mesmo que tenhamos objeções morais,não tomar uma atitude a respeito (tornar-se vegetariano, fazer campanha pelo vegetarianismo) e consentir, mesmo que por omissão, que esses atos continuem a ser praticados, porque “sempre foi assim” ou porque “não há nada que se possa fazer”, ou porque “não é minha responsabilidade”.

[2] A participação ativa num ato de alienação moral, sob influência do poder da autoridade. A maioria de nós aceitará, se comandado por uma autoridade, tomar parte numa ação que de outro modo poderíamos considerar moralmente injustificada – por exemplo, se o professor nos disser que devemos dissecar um sapo para aprendermos anatomia e fisiologia, seja numa escola primária, onde supõe-se que as crianças tenham maior dificuldade de questionar a autoridade e fazer julgamentos morais, seja numa universidade, quando nossa capacidade de fazer ambos já está plenamente desenvolvida.

[3] O abuso de poder – na verdade, esta ação não difere significativamente das anteriores mas, pelo contrária, é função delas. A maioria de nós, mesmo depois de saber que matar animais não é necessário para nossa saúde e nutrição, não deixará de consumi-los por isso, simplesmente porque o sabor da carne de animais mortos nos agrada e, afinal, “eles existem para nos servir”.

Desse modo, mesmo que nossa intuição nos diga que é errado violar os direitos fundamentais de um ser humano, ou de um animal, se uma figura de autoridade nos disser que isso é necessário, tenderemos a concordar e até participar ativamente. É por isso que, se virmos um homem comum queimar um gato no meio da rua, acharemos aquilo repugnante e cruel, e teremos o ímpeto de impedir a atitude e punir o agressor. Mas se o mesmo gato tiver sua pele queimada num experimento de laboratório, mesmo que intuitivamente consideremos aquilo repugnante ou cruel, a maioria de nós se contentará com a alegação da figura de autoridade – o experimentador – de que aquele procedimento é necessário para a segurança ou saúde do ser humano. E, se formos nós mesmos trabalhar num laboratório, a alienação moral chegará a tal ponto que não experimentaremos mais qualquer tipo de empatia em relação àqueles animais, cuja existência apenas se justifica na medida em que extraímos “resultados” dos experimentos em seus corpos. É por isso que as filmagens clandestinas de circos, laboratórios, abatedouros, frequentemente testemunham atitudes de total desprezo pela vida e sensibilidade dos animais, pois os seres humanos envolvidos naquelas atividades chegaram ao limite extremo da dissociação moral em relação ao outro, incapazes de sentir qualquer tipo de empatia. A dessensibilização faz parte do processo de aceitação e racionalização dos atos de violência, sejam praticados por vivisseccionistas e trabalhadores de abatedouros ou por soldados e torturadores.

Hierarquia e exclusão na alienação moral

Na experiência de Yale, a violência é estruturada e legitimada a partir de uma escala hierárquica: um mandante, um executor e uma vítima. O segundo caso, a experiência da prisão de Stanford, não testemunha apenas um mero desnível hierárquico, mas uma situação de exclusão de um grupo da comunidade moral. O prisioneiro é um indivíduo que perdeu parte dos seus direitos em função de um delito pelo qual foi condenado. Quanto maior a situação de exclusão, mais vulnerável está o indivíduo.

Nos dois experimentos, a figura de autoridade, como visto, tem um papel chave. Sem que isto sirva para eximir de responsabilidade aqueles que “apenas” cumprem ordens, podemos avaliar as razões desse papel decisivo das escalas mais altas da hierarquia. A correlação entre hierarquia política e alienação moral é nítida: aqueles numa posição hierárquica subalterna, ao mesmo tempo que estão expostos aos riscos da alienação moral (os “estudantes” que davam respostas erradas), também podem participar ativamente da violação dos direitos morais alheios, sob a coação da autoridade (os “examinadores” e os “guardas”). Na verdade, são os estratos mais baixos da hierarquia aqueles que exercem a violência bruta – guardas, soldados, torturadores. Entretanto, é a figura de autoridade nos estratos mais altos da hierarquia que legitima a alienação de uma parte do grupo das garantias da comunidade moral.

A alienação moral provocada pela exclusão social e política não é de modo algum um fenômeno recente. Pelo contrário, era mais exacerbado, e socialmente aceitável, na era pré-industrial. A maioria das sociedades estatais pré-modernas – isto é, aquelas sociedades, anteriores ao capitalismo e à Revolução Industrial, que tinham a autoridade constituída na forma de um Estado – reproduziu-se por meio do trabalho escravo ou suas variantes, como a servidão. Foi assim com em todas as civilizações antigas – Grécia, Roma, Egito, Mesopotâmia – com a Europa Medieval, com as civilizações da América – aztecas, incas, maias – e com as civilizações muçulmanas e africanas.

Na Europa medieval, o senhor feudal considerava o camponês apenas na medida em que este lhe fosse útil para manter sua vida confortável: o camponês, para ele, é um meio, uma “coisa”. O senhor de escravos igualmente via ao seu escravo como propriedade, “coisa”, da mesma forma que o trabalhador moderno é um meio para o fim da acumulação do capital.

O genocídio dos índios americanos, a partir da conquista espanhola, como afirma o semiólogo Tzvetan Todorov[4] somente foi possível porque a diferença dos espanhóis e outros europeus perante os índios americanos era tão gritante que os europeus não conseguiam enxergá-los como humanos. Consequentemente, experimentavam uma dissociação moral tão forte que lhes consentia cometer todo tido de atrocidade contra os mesmos. A alienação moral também era praticada em relação àqueles que desafiavam os costumes ou as normas sociais – como, aliás, ainda acontece nos dias de hoje: minorias religiosas, praticantes “bruxaria” (geralmente, rituais pagãos oriundos de tradições religiosas anteriores à cristianização da Europa), criminosos.

Por outro lado, os indivíduos em posições subalternas se veem impelidos a obedecer mesmo a ordens que, ao observador externo, pareçam injustas. Isso fica evidente não apenas em experimentos psicológicos, mas nos eventos históricos. O camponês temia o senhor feudal, como o prisioneiro ao guarda, porque estes dispõem de poder sobre ele – muitas vezes de vida e morte. Da mesma forma que o fiel teme a Deus, pois O percebe como detentor do poder sobre todas as coisas. Se o senhor feudal instruísse o camponês a ceder sua esposa para satisfazer seus desejos sexuais, o camponês o faria, por medo da punição advinda da desobediência. Se um prisioneiro se rebela, ele poderá ser disciplinado pelos próprios pares, temerosos de que a punição ao rebelde seja estendida aos demais prisioneiros. Se o fiel é instruído a matar em nome de Deus, ele o fará, no temor de que o Senhor envie pragas e maldições, ou condene o infiel ao flagelo eterno. A maioria absoluta de nós, vivendo sob o regime nazista, tomaria uma das atitudes acima descritas: consentimento tácito ou participação ativa – dentre os quais alguns indivíduos se destacariam pela execução das ordens com um particular empenho e prazer. Assim, a figura de autoridade tem dois poderes que possibilitam que crimes atrozes sejam praticados em sua obediência: a legitimação e a coação. Podemos matar o infiel, o estrangeiro, o judeu, porque acreditamos na alegação da autoridade de que aquilo é justo ou necessário. Ou podemos fazê-lo por medo das punições consequentes da desobediência.

Devemos extrair disso uma visão pessimista da natureza humana, de que os seres humanos são maus por natureza e, se lhes dada a oportunidade, cometerão as piores atrocidades para atingir seus objetivos? Não creio. Percebam que a maioria de nós se envolveria em atos de outro modo considerados imorais somente se instados por uma autoridade. O experimento de Yale foi repetido com voluntários, sem a presença física da figura de autoridade, ou a presença de uma figura sem autoridade reconhecida – um auxiliar, por exemplo. Nesse caso, a submissão à autoridade caiu drasticamente. Muitos se recusaram, outros “trapaceavam”, dizendo que aplicavam os choques, sem aplicar, ou aplicando choques de intensidade menor que a instruída[5].

Por outro lado, se o ser humano se sente imbuído de um poder de autoridade, ele se sentirá impelido a abusar dele em proveito próprio ou do que considera o interesse geral. Muitos governantes agem com sincera crença de que seus atos se destinam ao melhor interesse dos seus governados. Isso não torna seus atos moralmente mais elevados – pelo contrário, o senso de verdade e justiça poderá impeli-lo a atos moralmente ainda mais repugnantes, porque “os fins justificam os meios”. E esta é a chave para entender o fenômeno da violência de massas na Era do Iluminismo.

De volta ao paradoxo Iluminista

Em minha opinião, foram estes os fatores que fizeram do sonho Iluminista um pesadelo para a maioria da humanidade, e de todo o planeta, incluindo os animais. Por um lado, a objetificação: as vítimas da fome, das desigualdades sociais, das guerras por recursos naturais. Embora não um atributo específico da sociedade industrial, esse fenômeno foi potencializado e multiplicado. A sociedade industrial aumentou significativamente nossa capacidade de criar e destruir. E a nossa brutalidade aumentou na mesma medida.

Por outro, o senso de verdade e missão. Historicamente, essa foi a motivação que induziu aos maiores crimes contra a humanidade, tais como os da Inquisição, o extermínio dos povos indígenas, as guerras religiosas e, no mundo contemporâneo, os crimes do colonialismo, stalinismo e nazismo. Atribuir tais fenômenos a “acidentes” da história provocados por pessoas más ou insanas é fugir a resposta verdadeiramente perturbadora: estes foram crimes políticos, crimes de autoridade e de obediência. Crimes praticados por indivíduos – autoridades e subalternos – que se sentiam incumbidos de uma missão moralmente justa, superior.

Em muitos casos, como o do colonialismo e até da Inquisição, as vítimas eram tidas como beneficiárias de seu próprio flagelo. A fogueira da Inquisição servia para purificar o pecador. Os colonizadores criam que levavam aos povos “primitivos” as luzes da civilização e do cristianismo. Em outros, como o nazismo e o stalinismo, as vítimas eram os indivíduos tidos como obstáculos à realização desses ideais superiores, fosse a pureza racial ou o fim da sociedade de classes.

Em todos esses casos, a missão legitimava o emprego de quaisquer meios necessários para sua concretização. Da superioridade moral dos “missionários” decorria, logicamente, a inferioridade moral do outro e, portanto, a licença para dele dispor, como “meio para um fim”, em vez de vê-lo como um “fim em si mesmo”. E assim o indivíduo passa, de sujeito, à condição de objeto.

E, da mesma forma, o ser humano justifica a submissão dos demais animais não apenas pelo poder bruto, mas pela legitimidade de um objetivo mais elevado, seja a sobrevivência e proteção da vida humana (a “necessidade” de se alimentar de carne, a necessidade de testar substâncias em animais), seja o progresso da ciência, ou até mesmo uma licença divina – “Deus colocou os animais no mundo para nos servir”. Se pensarmos com cuidado, os mesmos argumentos foram e, em certos casos, ainda são usados para legitimar também a violação de direitos humanos. São exemplos os experimentos nazistas ou com negros “em benefício da ciência” e o fundamentalismo religioso. O que esses casos têm em comum, e que permite que eles aconteçam, é a redução dos indivíduos – animais ou humanos – à condição de inferiores, de objetos.

Os elementos que tornaram a Era do Iluminismo particularmente perversa para a desindividualização do indivíduo foram o senso de missão e a industrialização. Os crimes contra a humanidade cometidos no século XX foram todos perpetrados em nome de causas nobres: a liberdade, a igualdade, a civilização, a pátria. De ambos, porém, o mais decisivo foi o segundo, pois, como visto, o primeiro já existia em outras épocas. Portanto, são menos as idéias Iluministas que as ferramentas de seu tempo que favoreceram as atrocidades do século XX.

E, dentre essas ideias, o que vimos prevalecer não foi  a visão de mundo individualista, e sim seu completo oposto; porque os ideais universalistas das ideologias iluministas induziam à desumanização e desindividualização do outro. Muitas vezes, aliás, à desindividualização de si mesmo: “eu daria a minha vida por esta causa”. Os indivíduos tornam-se meios para os fins da liberdade, igualdade, fraternidade, justiça.

Mesmo quando percebe a si mesma como “individualista”, a visão de mundo que legitima submissão e objetificação do indivíduo na verdade está resvalando no egoísmo – quando usamos um indivíduo para nos próprios fins egoístas – ou no organicismo – quando usamos um indivíduo para o que percebemos como “interesse coletivo” ou “bem da sociedade”. Pois o verdadeiro individualismo parte da percepção de uma igualdade fundamental que gera uma igualdade de direitos e igual consideração de interesses: nenhum interesse, individual ou coletivo, pode se sobrepor a esses direitos fundamentais.

Não enxergar o outro como indivíduo significa não enxergá-lo como um semelhante. Portanto, um inferior. Uma inferioridade que legitima a escravidão, a exploração, o extermínio. Não se trata de ignorar as diferenças, padronizar, homogeneizar, que foi precisamente o efeito da Revolução Industrial: os seres humanos foram padronizados, e mesmo assim continuaram desiguais. Trata-se, isso sim, de enxergar a igualdade básica e fundamental para além das diferenças superficiais dos costumes e das aparências: a igualdade da condição humana, e a igualdade da condição animal. Porque o ser humano não consegue enxergar aquilo que o aproxima dos demais animais – a sensibilidade, a consciência, os sentimentos, os desejos, as necessidades – ele vê ao animal como radicalmente diferente e, portanto, inferior. E isso lhe dá a licença para usar o animal como um objeto.

O exercício do poder, por sua vez, está intimamente ligado ao sentimento de superioridade. Aquele que detém o poder sobre as ações do outro, detém o poder sobre a vida do outro. Está numa posição de superioridade material de fato, que o coloca numa posição de uma superioridade metafísica, superioridade moral presumidas. Uma superioridade que dá licença não apenas de decidir pelo outro – de impor obediência – mas de decidir sobre o outro – o poder de vida e morte.

E assim sendo, os ideais iluministas, em vez de igualdade e justiça, acabaram por redundar em presunção de superioridade e exercício da violência. Seu senso de missão redundou na sujeição dos indivíduos aos fins, em vez de vê-los como fins em si mesmo. O pensamento crítico, dizem Adorno e Horckheimer, ao se tornar dominante, passa a ser “um mero instrumento a serviço da ordem existente”, o que o leva, “contra sua própria vontade, a transformar aquilo que escolheu como positivo em algo negativo, destrutivo”[6]. Foi este precisamente o caso do Iluminismo, que era, aliás, o pensamento que os autores tinham em mente ao cunhar a frase acima.

A crítica de Adorno e Horckheimer ao Iluminismo, entretanto, foi frequentemente mal entendida. Não se trata de uma condenação, mas de uma leitura crítica – dialética – das suas contradições. De como em nome da humanidade pode-se matar milhões de seres humanos. E também do exercício crítico necessário para que o pensamento crítico não se torne ele mesmo um instrumento para perpetuar as injustiças e violências que se propõe a combater. A única esperança para o pensamento crítico é a autocrítica: “Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino. (…) o esclarecimento tem que tomar consciência de si mesmo”[7]. O fracasso do Iluminismo, portanto, não está no triunfo dos seus princípios, mas na falência dos mesmos, no fracasso em realizá-los, em função de suas próprias contradições.

Não obstante, o potencial revolucionário do Iluminismo está presente, e eles sabiam disso. É verdade que no século XX morreram mais pessoas que eu todas as épocas anteriores da história. Contudo, se hoje nós podemos olhar para essas mortes como crimes contra a humanidade – ainda que essa visão não seja consensual – isso também se deve em parte à contribuição do Iluminismo, de questionar a injustiça e as desigualdades, que antes eram tidas com a ordem natural das coisas.

O nosso trabalho, como ativistas pelos direitos animais, é estender esse olhar crítico para além da esfera da humanidade.

Conclusão

A partir das considerações acima, podemos começar a entender como fenômenos como o Holocausto foram possíveis e, subitamente, uma população inteira pode se tornar participante ou cúmplice de atos cada vez mais brutais de alienação moral. Não há uma contradição necessária entre o papel que cidadãos comuns e “respeitadores da lei e da ordem”, jogam nessas situações. Pois é justamente a tendência à obediência que conduz a tais atos.

Os “examinadores” da experiência de Yale, assim como os carcereiros de Auschwitz, não eram meros “títeres” da autoridade. Eles tinham o discernimento e o poder de se recusar a tomar parte nessas ações criminosas. Eles próprios se encontravam em posição de autoridade, ainda que no nível mais baixo. Isso mostra que o problema é muito mais complexo que uma concentração de poderes. A autoridade em si mesma gera uma tendência virtualmente inevitável ao abuso de poder. Cotidianamente, nós testemunhamos isso apenas em atos de corrupção, pequenos delitos, impunidade. Em circunstâncias extremas, porém, isso conduz a violência também extrema.

Assim, a hierarquização, combinada com o poder da autoridade, permite e legitima os atos de violência em larga escala. O que diferencia o Estado do criminoso é que o primeiro detém os meios de violência legítima, e pode exercê-los sob a alegação do bem comum – por mais absurdo que seja o fundamento dessa alegação, como foi o caso do nazismo. De fato, quando o fundamento parece razoável, a violência se torna ainda mais perniciosa, pois suas vítimas se vêem ainda mais vulneráveis e incapacitadas de buscar apoio, proteção ou reparação, destinadas ao esquecimento e à absolvição de seus algozes. Pensemos nas vítimas dos bombardeios que destruíram a cidade de Dresden, na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial, cujo sofrimento e morte ainda hoje é justificado em nome da defesa da democracia e do combate ao nazi-fascismo.

Seja na sociedade humana, seja na interação com os animais e o meio ambiente, a hierarquização naturaliza as desigualdades. Se por um lado o Iluminismo nos fez arguir sobre nossa relação com a natureza e os animais, por outro ele celebrou o ser humano como ápice da natureza, ser belo e racional. A industrialização completou o serviço: ela ampliou exponencialmente nosso poder de controlar a natureza, as formas de vida. O ser humano coloca-se numa posição de superioridade sobre a natureza e tudo que nela existe, da mesma forma que o governante coloca-se numa posição de superioridade sobre o resto da sociedade, que o homem coloca-se numa posição de superioridade sobre a mulher, que um “povo”, “nação” ou “raça” coloca-se numa posição de superioridade sobre outros “povos”, “nações” ou “raças”.

O especismo, tal qual o racismo ou o sexismo, legitima a violência por meio da presunção da superioridade. Quando o homem mata a esposa infiel, por exemplo, por se acreditar no direito de “lavar a sua honra com sangue”, ele o faz porque não enxerga a mulher como uma “igual”. A mulher deve “honrar” o seu marido, sendo-lhe submissa, guardando pudor, mantendo-se fiel. Da mesma forma, o escravo deve “honrar” seu senhor: trabalhar com diligência, servir com presteza e submeter-se com docilidade. Ao submetê-los à sua vontade, o homem os está tratando como um meio, pois suas vidas não têm valor inerente: é ele, homem, que atribui esse valor, na medida em que estes lhe servem com honra e fidelidade. A mulher e o escravo deixam de ser um fim em si mesmo, pois suas vidas estão condicionadas aos fins de seu senhor, o papel servil e submisso que este lhes atribui. O mesmo se dá em relação aos animais: os seres humanos os veem apenas como meios para fins humanos – mesmo Kant concordava com isto. Suas vidas não têm valor inerente pois sua existência, supomos, apenas se justificam por aquilo que nós, humanos, podemos extrair deles.

Recorrendo novamente a Adorno e Horckheimer, eles afirmam que a dominação humana sobre os animais e masculina sobre a mulher são duas dimensões do mesmo impulso de dominação da natureza. Porque as mulheres, como os animais, são fisicamente mais fracas que os homens, e como isso é um fato biológico, essa “diferença imposta pela natureza” é “a mais vergonhosa e humilhante que é possível na sociedade dos homens”, e “a fraqueza impressa pela natureza a marca incitando à violência” [8]. As mulheres são a “natureza” e o “animal” no interior da espécie humana.

Assim, o exercício da autoridade é inseparável do exercício da violência. O poder se legitima pelo direito, mas se afirma pela violência. Eu posso supor que tenho o direito de possuir um escravo, mas se não tiver os meios de submetê-lo (seja pela força física, seja pela força simbólica), esse direito não se materializa. Poder, superioridade e missão, juntos, constituem os elementos certos para gerar a alienação moral do outro e nossa dissociação moral em relação a este outro.

No sentido oposto da alienação moral do outro está, ao contrário, a empatia: o reconhecimento do outro como um semelhante, a quem temos como um “igual”. Enxergar o outro como um igual é ver além da valor material: é vê-lo como um indivíduo, um indivíduo capaz de experimentar as mesmas sensações que eu mesmo.

E ao reconhecimento da igualdade, de ambos os lados, implica – ou deveria implicar – na renúncia na violência e, portanto, do princípio da hierarquia. Se ainda hoje o ser humano exerce a violência contra seus semelhantes e a natureza, é por presumir que tem direitos que estão acima dos demais. Se todos os seres humanos se percebessem como iguais, isto é, indivíduos com os mesmos interesses e direitos fundamentais, e os mesmos deveres mútuos – então não se sentiriam no direito de usá-los como meios para outros fins.

Isso se transpõe de modo perfeito para os direitos animais. Somente quando enxergarmos os indivíduos existentes nos animais, aquilo que nos torna semelhantes, em vez de diferentes – só então os seres humanos talvez sejam capazes de enxergar os animais não como objetos para o exercício do poder, mas como sujeitos de suas próprias vidas.

[1] STOUT, Martha. Meu Vizinho É um Psicopata. Rio de Janeiro: Sextante, 2010, pp. 74-8.
[2] O relato da experiência pode ser conferido em: www.prisonexp.org.
[3] Outro exemplo extremo e, justamente por isso, didático, pode ser o caso do sociopata Charles Parker Ray. Ray foi condenado pelo seqüestro, tortura e abuso sexual de três mulheres, embora o número total de suas vítimas seja estimado entre 14 e 60, tendo o próprio Ray admitido ter seqüestrado, torturado e matado ao menos uma mulher por ano, entre 1986 e 1999. Ele chamava o trailer em que submetia mulheres a prolongadas sessões de tortura e abuso sexual de “Caixa de Brinquedos”. Suas vítimas eram brinquedos inanimados para satisfazer suas fantasias perversas. Cf: www.serialkillers.ca/david-parker-ray/; www.desertjournalonline.com/2001archive/9-21-01%20Headliners.htm
[4] TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América. Rio de Janeiro: Ed. Martins Fontes, 1996.
[5] STOUT, Martha. Op. cit., pp. 78-80.
[6] ADORNO, Theodor, HORCKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 12.
[7] Idem, pp. 13-4. O “esclarecimento”, no texto original em alemão, pode ser entendido tanto quanto o conceito mais amplo de esclarecer, como o período e o pensamento iluminista.
[8]Idem, pp. 203-4.

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