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O paradoxo do Iluminismo – Parte I – Nascimento e morte do Indivíduo

21 de junho de 2010
24 min. de leitura
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As três grandes ideologias do Iluminismo

“Os direitos humanos são a ideia de nosso tempo”, disse o jurista Louis Henkin[1]. Eles expressam o advento e o triunfo do indivíduo na história do Ocidente. O reconhecimento do indivíduo e sua manifestação política através da doutrina dos direitos humanos são duas das ideias mais poderosas da história contemporânea. Por dois motivos: primeiro, pela sua abrangência, segundo pelo seu impacto na cultura e política das sociedades.

O advento dos direitos humanos se dá com o período que conhecemos como Iluminismo, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do século XIX, quando os filósofos, os comerciantes e financistas conhecidos como a “burguesia” e os homens e mulheres simples começaram a questionar o Antigo Regime, os reinos absolutistas da Europa, os privilégios de nascimento que detinham os monarcas e a nobreza, e começaram a defender a igualdade fundamental entre os seres humanos, e a lutar por ela. O auge desse movimento político-filosófico foi a Revolução Francesa, quando, em 1789, o chamado “Terceiro Estado” – a burguesia, a pequena burguesia, os trabalhadores urbanos e rurais – sublevaram-se contra a tirania monárquica e os privilégios de origem.

O Iluminismo deu origem às três grandes ideologias dos séculos XIX e XX: o liberalismo, o socialismo e o nacionalismo. O liberalismo, ideologia da burguesia por excelência, afirmava a igualdade e a liberdade individuais em contraste com o Antigo Regime, pois sob este a burguesia já economicamente poderosa se via politicamente excluída, pois não possuíam os supracitados privilégios de origem da nobreza, o grupo social dominante, cujo poder derivava antes da tradição militar e da propriedade rural.

Como força econômica e política ascendente, foi o liberalismo burguês que foi consagrado na primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão editada na França Revolucionária, em 1789. Portanto, foi a liberdade econômica e o direito de propriedade que se impuseram, bem como a exclusão dos não-proprietários dos direitos de cidadania.

O socialismo nasceu justamente da percepção das injustiças que o liberalismo não foi capaz de suprimir, ou não teve interesse em fazê-lo. O movimento operário, a luta pelos direitos dos trabalhadores, pela justiça social, pela transformação da igualdade filosófica do Iluminismo em igualdade de fato, pouco a pouco adquiriu uma identidade e ideologia próprios, na medida da percepção de que o capitalismo não poderia nem ser substituído pelas antigas formas de organização social, a “economia moral” dos camponeses pré-Revolução Industrial [2], nem ser meramente reformado para conciliar os interesses dos grandes industriais e proprietários de terra com aqueles dos operários e camponeses [3]. Assim como o liberalismo, ele possuía um apelo universal, como aliás ressalta a famosa conclamação do Manifesto do Partido Comunista: “Proletários de todos os países, uni-vos” [4]. O socialismo é filho do Iluminismo, tem o mesmo apelo à liberdade, igualdade e fraternidade universais, englobando todos os indivíduos humanos.

O nacionalismo, por sua vez, tem origem na construção de um ideal de povo e nação, que também surge na Revolução Francesa. Inicialmente esse povo era apenas o corpo dos cidadãos. Ao longo do século XIX, a definição da identidade desses povos e cidadãos passou a ser dada por semelhanças culturais, idiomáticas e fenotípicas – algo que era totalmente estranho às monarquias absolutistas, que nas suas guerras expansionistas transformavam em súditos indivíduos de diferentes tradições culturais. A nação veio ocupar o lugar do rei na definição da identidade coletiva e coesão social. Se o súdito devia obediência ao rei, sem rei, o cidadão deveria obediência à nação. Logo, está claro que o nacionalismo é também um filho do Iluminismo.

E, como herdeiras do Iluminismo, as três grandes ideologias do mundo contemporâneo, o liberalismo, o socialismo e o nacionalismo, são marcadas pelo individualismo. Este é a tese de que toda vida humana individual conta, todos os indivíduos são iguais e têm direitos e deveres na mesma medida, e devem ter seus direitos fundamentais preservados. Seria, nas palavras do filósofo Immanuel Kant, a tese de que o ser humano é “um fim em si mesmo”.

A meta-ideologia do Individualismo

O individualismo foi uma espécie de meta-ideologia da Era Contemporânea, isto é, uma ideologia que perpassa todas as demais. Para além das enormes e inconciliáveis diferenças entre si, todas essas ideologias são justificadas em termos individualistas, da promoção da liberdade individual e da igualdade entre os indivíduos. Até mesmo o nacionalismo pode ser incluído na sua esfera, apesar da sua legitimação em uma identidade coletiva, pois geralmente vem acompanhado do princípio da igualdade dos direitos de cidadania dentro da nação.

Logo, o individualismo está também na raiz dos direitos humanos. Embora nas diferentes ideologias mude a ênfase para a qual pende para um dos lados da balança individualista – na verdade uma dicotomia falsa e, em grande medida, artificial, entre liberdade e igualdade – o indivíduo é sempre a referência fundamental. A presunção da igualdade entre os seres humanos pressupõe, necessariamente, a igualdade entre os indivíduos e, portanto, seu valor em igual medida. Por isso o socialismo, mesmo que muitos socialistas não se dêem conta, também é uma ideologia individualista.

As sociedades organicistas, coletivistas, não se importam se há desigualdade entre os indivíduos, ou se alguns indivíduos não são livres. Dentro da visão de mundo organicista, não apenas as desigualdades sociais, mas o sexismo, o racismo e a xenofobia são fenômenos perfeitamente aceitáveis. Na verdade, essa desigualdade é entendida como necessária para a harmonia social, como a ordem “natural” das coisas, pois a hierarquização da sociedade supõe que cada indivíduo cumpre um papel específico na sociedade, geralmente determinado desde o nascimento, funções sociais rígidas a serem cumpridos para o bem de toda a sociedade: governante, sacerdote, guerreiro, comerciante, artesão, lavrador, mãe, escravo, etc.

Essa concepção organicista-coletivista da sociedade costuma ser associada à sociedade de castas, na Índia, mas também foi, durante muito tempo, a visão predominante no Ocidente, até justamente a Revolução Francesa e o lento triunfo das teses igualitárias dos direitos humanos. Foi em parte devido à tentativa de aplicar o socialismo em sociedades de tradição organicista, na Rússia, China, Vietnã, Camboja, Coreia do Norte, que levou ao completo desprezo que esses regimes manifestaram pela vida dos indivíduos.

Assim, para se desenvolver, a doutrina dos direitos humanos requeria uma percepção muito apurada do indivíduo. E como e porque ela se desenvolveu na Europa do Século XVIII? Uma explicação clássica é a da divisão social do trabalho: a classe dos comerciantes, a burguesia, questionou a ordem organicista do Antigo Regime que lhes bloqueava tanto o progresso econômico (a acumulação de capital, a auferição do lucro) quanto político (sendo o governo exercido pelo Monarca e a nobreza, com base no direito consuetudinário, isto é, baseado na tradição e transmitido pela hereditariedade).

Mas será que as coisas são assim tão mecânicas? Trabalhos como o do sociólogo Norbert Elias destacam o “processo civilizador”, que por meio das regras sociais e até as normas de decoro e etiqueta apurou a separação dos corpos e autopercepção da individualidade[5]. A historiadora Lynn Hunt corrobora esse tese[6], e também atribui grande peso à literação. A expansão da alfabetização e a popularização dos romances facilitou o desenvolvimento da empatia. Pelos romances e relatos, o leitor tinha acesso à psicologia dos personagens, “experimentava” seu sofrimento, passando a perceber o outro como um semelhante, o que despertava a empatia e o senso de igualdade[7]. Essa explicação tem suas limitações, no entanto. Pois, como a própria autora ressalta, a empatia é uma faculdade universal. E, malgrado a expansão da alfabetização, ainda era pequeno, no século XVIII, o montante de indivíduos letrados e com acesso a obras literárias.

O conteúdo político dos Direitos Humanos

Ainda segundo Hunt, os direitos humanos não podem ser separados de seu conteúdo político. No século XVIII, o conceito de “direitos da humanidade”, por exemplo, era empragado fora de um contexto político, mas num contexto teológico ou material: os monges, em sua vida acética, renunciavam aos “direitos da humanidade”, da fruição dos prazeres da vida, dizia em 1734 Nicolas Lenglet Dufresnoy[8].

Os direitos humanos, pelo contrário, têm um caráter político, pois são direitos relacionais, e exigem a participação ativa da sociedade tanto na sua proteção quanto na sua promoção. “Não são os direitos de humanos num estado de natureza: são os direitos de humanos em sociedade”[9].

O que nós hoje entendemos como “direitos humanos” deriva do conceito mais antigo de “direitos naturais”, ou seja, os direitos que o ser humano possui por sua natureza humana [10]. O conceito de direito natural, por sua vez, tem uma origem muito anterior, e já era usado, por exemplo, por Thomas Hobbes em sua obra clássica, O Leviatã (1652). A noção de direitos naturais evoluiu para a de “direitos do homem”, no século XVIII, em clássicos como Do Contrato Social (1762), de Jean-Jacques Rousseau. Os “direitos do homem” ainda tinham, entretanto, um significado muito vago. A primeiro discriminação do que de fato seriam esses direitos teria vindo com a Declaração de Direitos da Virginia, em 1776[11].

O documento que os celebrizou, entretanto, que serviu de referência para todas as declarações subsequentes, foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Cada reviravolta política na França Revolucionária equivaleu a uma nova Declaração. A mais avançada delas, aprovada em 1794, abolia a escravidão e implantava o sufrágio universal masculino. Ela não chegou a entrar em vigor, pois o Diretório que a editou foi dissolvido, e substituído por um governo da alta burguesia, a quem a garantia desses direitos não interessava.

Dos “direitos do homem” evoluiu-se para a noção de “direitos humanos”, livre da conotação sexista do conceito original que de certo modo espelhava, por sinal, seu caráter arbitrário, ainda que do ponto de vista filosófico eles fossem proclamados como universais.

Com o tempo, porém, a noção dos direitos humanos universais foi se impondo, e foi definitivamente consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que afirmava que todos os seres humanos são essencialmente iguais, e portanto iguais em direitos (Artigo 1º). Assim, não reconhecia mais qualquer distinção de origem, classe, sexo, religião, ideologia, etnia, “raça”, etc., entre os seres humanos (Artigo 2º).

É importante ressaltar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não liga diretamente os direitos aos deveres: todos os seres humanos têm os mesmos direitos fundamentais à vida, liberdade e integridade, nos termos do Artigo 3º da Declaração (integridade referida no texto como “segurança”), embora nem todos tenham direito à cidadania – essa é uma das principais distinções que, como veremos, não é recente. A principal diferença entre a Declaração de 1789 e a de 1948 é a universalização do princípio da cidadania (Artigo 21), disponível a todos os indivíduos humanos adultos portadores de uma determinada nacionalidade. Daí a importância estratégica da afirmação de que todo ser humano tem direito a uma nacionalidade (Artigo 15): pois somente com base nessa nacionalidade ele poderá gozar plenamente dos direitos de cidadania.

A combinação dos Artigos 1º, 2º, 15 e 21, portanto, além de outros artigos, refuta qualquer preconceito com base em características de nascimento ou de classe social. O Artigo 15 também evidencia e consagra o princípio da nacionalidade como o legitimador e ordenador da política. De todo modo, mesmo fora de seu próprio país, embora não um cidadão, o ser humano ainda tem seus direitos fundamentais consagrados no Artigo 3º.

Universais na teoria, arbitrários na prática

Existem, no entanto, dois evidentes e graves descompassos entre a teoria dos direitos humanos e a sua aplicação prática. O primeiro deles, já sugerido, é que os “direitos do homem” acabaram por se limitar aos direitos de alguns homens, os homens abastados da burguesia.

É de Thomas Jefferson, um dos líderes da luta de independência e 3º presidente dos Estados Unidos, a redação da Declaração de Independência das Treze Colônias, à qual já referi em textos anteriores. Recordemos a sua mais célebre e influente passagem: “Consideramos estas verdades como autoevidentes: que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca pela Felicidade”[12]. Thomas Jefferson, redator da Declaração de Independência e arauto dos “direitos do homem”, era proprietário de escravos.

Àquela época, as mulheres, crianças, escravos, camponeses, operários, permaneceram privados de boa parte dos proclamados “direitos do homem”. Isso não implica que tais “direitos do homem” não tivessem absolutamente nenhuma relação com estes indivíduos. Suas vidas poderiam ser tidas como dignas de algum respeito e proteção, ao menos em tese. Advogava-se o tratamento “humanitário” dos escravos e o abandono das penas consideradas “cruéis”. Mas era-lhes recusado o direito à liberdade, à cidadania e à participação política, sob a alegação de que esses grupos sociais não eram dotados de “autonomia” nem de razão plenas. Ou bem estavam submetidos à autoridade de outro ser humano – o esposo, o pai, o patrão, o proprietário –; ou eram indivíduos sem interesses na esfera pública que, afinal, protegia e regulava a propriedade e as relações de mercado, e os direitos de cidadania lhes eram, portanto, fúteis ou infundados; ou simplesmente eram eram vistos como seres humanos desprovidos de razão plena e, portanto, embora dignos de tratamento humanitário, indignos do gozo pleno dos “direitos do homem”[13]. Qualquer semelhança com os direitos animais não é mera coincidência.

O outro grande descompasso entre teoria e prática nos direitos humanos, é o reconhecimento de que, infelizmente, os direitos fundamentais do indivíduo raramente são efetivamente protegidos, respeitados e promovidos. Pelo contrário. Se historicamente a universalidade dos direitos humanos impôs-se como interpretação dominante, até os dias de hoje persiste o grande problema da sistemática violação dos direitos humanos. Mais grave ainda é constatar que essas violações, embora possam partir daqueles que não reconhecem nem admitem a validade do conceito de “direitos humanos”, elas são quase com a mesma frequência violados por indivíduos e Estados que, ao menos no discurso, declaram-se defensores desses direitos.

Desindividualização do indivíduo e industrialização da violência

Englobando essas duas contradições, está uma contradição mais abrangente, que não é apenas uma contradição dos direitos humanos, mas de todo o desenvolvimento histórico da filosofia e política iluministas – o que a torna, no meu entender, ainda mais grave e mais difícil de combater. O grande paradoxo do Iluminismo é justamente que o triunfo do indivíduo como sujeito social, como fim último da ordem social, foi acompanhado de uma escalada sem precedentes da violência e da desindividualização contra esse mesmo indivíduo.

Já durante a Revolução Francesa, que foi um movimento inspirado no Iluminismo e, teoricamente, determinado a construir uma nova sociedade fundada em seus moldes, a violência em massa como método de ação política, a liberdade e dignidade individuais, que deveriam ser seu preceito maior, começaram a ser sacrificados em nome do interesse coletivo e da remoção dos vestígios do Antigo Regime e instaurar um Regime das Luzes. Maximilien Robespierre, advogado iluminista, admirador de Jean-Jacques Rousseau, que antes redigira um poderoso manifesto contra a pena de morte, depois, como líder da Convenção, instaurou o que ficou conhecido como “Grande Terror”. Nesse período, de nome sugestivo, estima-se que cerca de 40 mil pessoas foram executadas, muitas sem julgamento, sob acusações de atos contrarrevolucionários, como poderiam ser qualificados qualquer forma de crítica, dissenso ou descontentamento. Tal forma de paranoia e perseguição política dariam a tônica de diversos movimentos revolucionários, desde então. Uma famosa reflexão Robespierre sintetiza o espírito desse período e todas as inúmeras vezes em que, desde então, a violência em massa foi justificada como necessária para promover os ideais da justiça e igualdade:

Se a mola do governo popular na paz é a virtude, a mola do governo popular na revolução é, ao mesmo tempo, a virtude e o terror: virtude sem a qual o terror é funesto; o terror, sem a qual a virtude é impotente. O terror não é outra coisa que a justiça ágil, severa, inflexível; ele é, portanto, uma emanação da virtude: ele é menos um princípio particular que uma consequência do princípio geral da democracia, aplicada às mais prementes necessidades da pátria. [14]

No ocaso da Revolução, ascendeu ao poder o general Napoleão Bonaparte, herdeiro dos preceitos revolucionários, epítome do Iluminismo, o filho pródigo do Século das Luzes: um homem de origem humilde, oriundo de uma região periférica, a ilha de Córsega, que ascendeu a general e depois governante pelos seus méritos como estrategista militar – o exemplo mais bem acabado do ideal liberal de que qualquer indivíduo, pelos seus méritos pessoais, pode ascender socialmente, a despeito da sua origem “de berço”.

Napoleão autoproclamou-se Imperador da França. Em 1812, lançou uma grande campanha militar de invasão à Rússia. Justificou tal invasão em termos Iluministas: libertar a Rússia das trevas do absolutismo. Para cumprir essa tarefa, arregimentou um exército de aproximadamente 600 mil homens. Sua campanha foi um fracasso. Ocuparam uma Moscou deserta e em chamas, estrategicamente evacuada pelos russos. Sem mantimentos, castigados pelo inverno, bateram em retirada, sendo então perseguidos pelo exército inimigo. Dos 600 mil homens de Napoleão, cerca de 40 mil retornaram da campanha militar russa com vida – um índice de mortalidade de aproximadamente 93%.

Na Era do Indivíduo, a violência não tem rosto – são números numa planilha. Ao mesmo tempo que as execuções e torturas públicas, tão comuns nas Idades Média e Moderna, foram abolidas em favor do ideal humanista, milhões de seres humanos anônimos foram assassinados em guerras cada vez mais sangrentas, genocídios e outras formas de conflito. Mais seres humanos foram mortos no século XX do que em todas as épocas precedentes, somadas, tendo os civis como as principais vítimas. Somente nas Guerras Mundiais, mais de 60 milhões foram mortos; nos regimes socialistas da União Soviética e China, outras dezenas de milhões; na África, as guerras de independência, guerras civis, fome, minas terrestres também produziram milhões de mortos e outros tantos milhões de refugiados; na América Latina, as ditaduras militares, esquadrões da morte, narcotráfico e narcoguerrilha vitimaram outros tantos milhares. Tivemos pelo menos seis casos de genocídio internacionalmente reconhecidos: Armênia, 1915; Ucrânia, 1932-3; os judeus na Segunda Guerra Mundial; Bósnia e Kosovo, 1991-99; Ruanda, 1994; o regime do Khmer Vermelho no Camboja, 1976-78, que não teve características de limpeza étnica, mas vitimou um quarto da população do país. A Era do Indivíduo foi também a Era dos extermínios em massa. Houve pelo menos um caso de genocídio precedente, o dos indígenas americanos, iniciado no século XVI com a conquista espanhola. Contudo, com a Revolução Industrial e a expansão do capitalismo, também os extermínios coletivos se expandiram e multiplicaram em escala industrial.

Talvez seja este um dos nós da questão: o que o Iluminismo cedeu no mundo das ideias, a Revolução Industrial tirou no mundo material. Um dos efeitos mais marcantes da Revolução Industrial, perturbador, mas raramente percebido, é que ela não multiplicou, formatou, homogeneizou e padronizou apenas o mundo da produção. Ela teve exatamente o mesmo efeito sobre a humanidade: a população multiplicou-se em escala industrial; suas idéias, costumes, aparências e anseios foram padronizados e homogeneizados; suas vidas individuais foram contabilizadas com números de população, rentabilidade, lucro, desemprego, analfabetismo… e morte. Foi a industrialização do ser humano e da violência. O paradoxo não é tanto que a emergência do indivíduo abriu espaço para o massacre das coletividades anônimas, mas que a própria individualidade foi submetida à padronização em massa, aí incluída o exercício da violência. O indivíduo é um bebê natimorto. Ou, na melhor das hipóteses, um paciente em estado vegetativo.

O paradoxo Iluminista e os animais

O paradoxo Iluminista está perfeitamente espelhado na nossa relação com os animais.

Não houve um único expoente do Iluminismo que não tivesse uma palavra a dizer sobre os animais. Rousseau defendeu sua inclusão na nossa comunidade moral. Voltaire ridicularizou o mecanicismo cartesiano. Thomas Paine, revolucionário que lutou dos dois lados do Atlântico – na Independência dos Estados Unidos e na Revolução Francesa, onde foi o único deputado estrangeiro eleito para a Assembleia de 1789 – também advogou sobre o dever de compaixão com os animais, assim como foi, em sua época, um dos poucos a advogar contra a escravidão e em favor dos direitos das mulheres. Jeremy Bentham, fundador do utilitarismo, também defendia o dever de incluir os animais nas nossas considerações morais. Foi Bentham quem cunhou o conceito de “senciência”, tão empregado pelos ativistas veganos e é, em certa medida, o fundador do bem-estarismo. Embora hoje ultrapassada, a visão de Bentham foi pioneira em sua época. Immanuel Kant também sentiu a necessidade de tratar do dilema moral da relação dos seres humanos com os animais, embora tenha rejeitado a tese de que tenhamos deveres diretos para com eles. Arthur Schopenhauer, cujo trabalho Sobre o Fundamento da Moral (1841) foi influenciado pelas teses de Rousseau, também advogava o dever de compaixão pelos animais.

Quais foram, porém, as implicações práticas disso? Assim como com o ser humano, nossa percepção do animal se transformou com o advento do Iluminismo. Assim como com o ser humano, isso não resultou numa mudança qualitativa na nossa relação com eles. Na verdade, em ambos os casos, é provável que os efeitos deletérios do Iluminismo ultrapassem de longe os seus efeitos positivos.

Como de modo geral ocorreu com os direitos humanos, dentre aqueles que advogavam o dever de compaixão pelos animais (ainda não era possível falar em “direitos animais” àquele tempo), muitos poucos sentiram a necessidade de transpor a filosofia e adentrar o mundo da prática.

Rousseau, por exemplo, é às vezes referido como vegetariano. De fato, malgrado o grande filósofo que foi, Rousseau jamais foi levado a tomar medidas conseqüentes com suas visões de mundo – como muitos iluministas, ele viveu uma vida aristocrática, distante dos seus ideais democráticos; abandonou os próprios filhos, a despeito de suas teses humanistas e bucólicas sobre a educação e a infância. E certamente não foi vegetariano.

Mas as atitudes individuais dos filósofos iluministas contam menos do que a crua realidade que os circundava, e que desde então apenas se expandiu. Não que seres humanos ou animais não fossem explorados ou objetificados antes. Mas sem dúvida a escala e a qualidade dessa exploração foi radicalmente transformada. Assim como no caso dos seres humanos, nós hoje produzimos, reproduzimos, manipulamos, torturamos, matamos e comemos mais animais do que em qualquer outra época da história. O capitalismo industrial teve o efeito oposto das teses bem-estaristas de Bentham e seus seguidores: ele maximizou a exploração e o sofrimento, e não o minimizou, como defendiam os utilitaristas.

Conclusão parcial

As graves contradições entre teoria e prática do pensamento Iluminista em geral, e da doutrina dos direitos humanos em particular, eu sempre insisto em ressaltar, não implicam, ao contrário do que diz o discurso pós-moderno, que os valores iluministas, incluindo o dos “direitos humanos”, não tenham qualquer validade.

É verdade que eles foram e seguem sendo usados como instrumento de exercício de poder e violência de regimes e movimentos políticos. Da direita à esquerda, grupos políticos instrumentalizaram a doutrina dos direitos humanos para legitimar as situações de injustiça e violência que esses grupos sociais promoviam ou perpetuavam, e que essa mesma doutrina condena com veemência. Pior ainda, muitos atos que violam os direitos humanos são eles mesmos justificados como atos de proteção aos direitos humanos – as intervenções humanitárias e a Guerra do Iraque são dois exemplos desse fenômeno.

Essa contradição se deve, em grande medida, aos limites da fundamentação dos direitos humanos, o princípio da racionalidade e o culto da razão. Contudo, é também uma contradição histórica, resultante das limitações políticas, filosóficas e éticas do seu tempo. Como pudemos recordar, mesmo entre os iluministas de primeira geração, sendo Rousseau o mais destacado, argumentar pela razão não inplicava excluir os seres tidos como “privados” da razão “plena” da comunidade moral, mas precisamente para incluí-los: um dos deveres dos seres “mais” racionais seria proteger os mais vulneráveis. O fato de muitos iluministas terem se preocupado com a questão animal e advogado em seu favor é um testemunho eloquente disso.

Os direitos humanos, portanto, não são um “caso perdido”. Seu uso como instrumento de exercício de poder e violência deriva mais da distorção do conceito que de uma “licença” inerente à própria doutrina, pois mesmo o culto da razão não necessariamente legitima a violência contra os indivíduos de racionalidade e autonomia supostamente limitadas. A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos mantém o apelo à razão, mas também proclama, sem margem para dúvida, a universalidade dos direitos humanos.

Ainda assim, a centralidade da razão, a grande premissa filosófica iluminista, limitou enormemente a abrangência dos princípios individualistas que lhe são próprios e singulares. Ao longo da história, o recurso ao argumento da razão serviu de justificativa para a limitação dos princípios iluministas. A grande limitação teórica do Iluminismo, portanto, não é seu caráter individualista, mas sim o culto da razão. É ela que determina o estatuto moral (inferior) dos animais e legitima sua exclusão da nossa comunidade moral, mais de dois séculos depois que Rousseau fez a apologia dessa inclusão[14].
 
Por sua vez, a grande limitação prática do Iluminismo, apesar da sua suposta percepção do indivíduo como sujeito histórico e fim último da sociedade, deriva da sua falha na defesa e proteção dos indivíduos dos atentados contra seus direitos fundamentais, contra sua dignidade. Incapacidade que, não raras vezes, parte dos próprios herdeiros do Iluminismo, por uma razão que pretendo explorar no próximo texto: a alienação moral do outro, a dissociação moral entre o sujeito e o outro sujeito, que transforma a relação sujeito-sujeito numa relação sujeito-objeto.

Em conclusão, sem a consciência do valor inerente, da dignidade do indivíduo e da vida individual, não é possível falar em direitos humanos, nem em direitos animais. Portanto, veganos que criticam indiscriminadamente o que percebem como o “individualismo” da sociedade contemporânea, não compreendem o verdadeiro sentido desse conceito, nem a sua importância para a causa em favor dos animais.


[1] HENKIN, Louis. The Age of Rights. New York-NY: Columbia University Press, 1990.
[2] É a tese defendida pelo historiador Edward P. Thompson, que a economia camponesa da Inglaterra pré-Revolução Industrial seguia determinados parâmetros morais, como a divisão de terras comunais e a prática de preços justos. A transformação da terra em propriedade privada da aristocracia agrária e a abolição dessa “economia moral” motivou a rebelião inicial dos camponeses, não com vistas a uma revolução social, mas a um retorno ao estado de coisas anterior. Cf. THOMPSON, Edward P. A Economia Moral e a Multidão Inglesa no Século XVIII. In: __________. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 150-202.
[3] No início da Revolução Industrial inglesa, a reação dos trabalhadores à superexploração e miséria de que eram vítimas motivo o movimento conhecido como “Luddismo”, que consistia na destruição das máquinas industriais, como personificações das mazelas pelas quais passavam. Segundo a interpretação marxista clássica, nessa fase o operariado não conseguia enxergar que não era a máquina, mas o burguês, o verdadeiro opressor, e que o verdadeiro problema era a concentração dos meios de produção. Numa segunda fase, o movimento operário britânico concentrou-se no “Cartismo” que, em vez de tentar restaurar a ordem o rebelar-se contra as máquinas, buscou a inclusão social dos operários. Seu nome deriva de um documento, a Carta ao Povo, que reivindicava a participação política da classe operária, com direito a voto e representação no parlamento.
[4]Uso aqui a tradução feita diretamente do alemão, contida na edição do livro SADER, Emir; GENRO, Tarso, et al (Coord.). O Manifesto Comunista 150 anos depois. Tradução de Victor Hugo Klagsbrunn. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo e Contraponto Editora Ltda., p. 41, e que diverge da tradução usual “Proletários de todo o mundo, uni-vos”.
[5] ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Dois volumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
[6] HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 28.
[7] Idem, p. 39.
[8] Idem, p. 21.
[9] Idem, p. 19.
[10] Idem, pp. 20-1.
[11] Idem, p. 24.
[12] ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Declaração de Independência das Treze Colônias. Indiana University Maurer School of Law. Bloomington: Indiana, sem data. Disponível em: http://www.law.indiana.edu/uslawdocs/declaration.html. Acessado em 15 de novembro de 2009.
[13] HUNT, Lynn. Op. cit., pp. 25-7.
[14] ROBESPIERRE, Maximilien, apud ALVES, Marcelo. Da Virtude ao Terror: itinerário de um pensador revolucionário. In: Princípios. Natal, v. 15, n. 23, jan/dez 2008, p. 112.
[15] Já abordei esse tema em outros textos. Cf. ROUSSEAU, J.-J. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. São Paulo: Martin Claret, 2005, pp. 28-9.

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