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Febo, o Cão-Lua

28 de outubro de 2009
4 min. de leitura
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Um dos textos mais belos já escritos sobre a relação homem-animal é de um jornalista italiano correspondente de guerra, CURZIO MALAPARTE (1898-1957), que nenhum envolvimento tinha com a causa dos animais. Isto, entretanto, não o impediu de contar no romance A Pele (1949), em tom autobiográfico, o período em que esteve exilado na ilha de Lípari, no Mediterrâneo, ao lado de um inesquecível companheiro: o cão Febo, que encontrara quase morto de fome à beira da praia, para então acolhê-lo naqueles difíceis anos de solidão e incertezas. A lembrança que o narrador tem de Febo é de uma beleza impressionante:

Era um ser nobre, a mais nobre criatura que encontrei na minha vida. A sua pele era cor de lua, rosa e dourada, a cor da lua sobre o mar, a cor da lua sobre as escuras e brilhantes folhas dos limoeiros e das laranjeiras, sobre as escamas dos peixes mortos que o mar, depois das tempestades, deixou no litoral, diante da porta da minha casa. Era ele da cor da lua sobre o mar grego de Lípari. Da cor da lua morta, pouco antes da aurora. Chamava-o, mesmo, de Cão-Lua.

Um cão fiel, que não se afastava dele um passo que fosse:

Seguia-me como um cão. A sua presença na minha pobre casa de Lípari, flagelada, sem descanso, pelo vento e pelo mar, era uma presença maravilhosa. Era como um reflexo do meu espírito. Unicamente a sua presença me ajudava a reencontrar o desprezo dos homens, que é a primeira condição de serenidade e da sabedoria da vida humana. Dele, muito mais do que dos homens e da sua cultura e da sua vaidade, aprendi que a moral é gratuita, que é um fim em si mesmo, que não pretende nem sequer salvar o mundo, mas unicamente inventar sempre novos pretextos para o seu desinteresse, para o seu livre exercício.

CURZIO MALAPARTE, cujo nome de batismo era Kurt Erich Suckert, conheceu de perto os horrores da guerra, na condição de jornalista membro do Partido Fascista, o que lhe dava salvo-conduto para transitar entre as vítimas da crueldade e os escombros deixados pelas tropas germânicas. Em razão das críticas que fez a Hitler e a Mussolini, acabou preso e enviado ao exílio, onde passou cerca de cinco anos. Ali teria se encontrado com o cão que imortalizou nas páginas de A Pele, obra que trata da miséria e da fragilidade humanas, e que nasceu de suas anotações secretas feitas durante o conflito mundial.

Não é preciso dizer que o narrador desse romance, ao fazer uma sondagem psicológica do homem, rende-se à doce serenidade de Febo:

Reconhecia nele os meus mais misteriosos movimentos, os meus instintos mais indefinidos, minhas dúvidas, meus medos, minhas esperanças. A sua dignidade perante os homens era a minha, a sua coragem, o seu orgulho perante a vida, o seu desprezo pelos sentimentos fáceis do homem eram os meus também. Entretanto, muito mais do que eu, era ele sensível aos obscuros presságios da natureza, à presença invisível da morte, que ronda sempre, taciturna e traiçoeira, em torno dos homens.

O protagonista conta que, ainda no exílio, acabou sendo conduzido, de mãos algemadas, até o cárcere situado em ilha vizinha. Nessa ocasião, enfatiza ele, Febo passou a segui-lo de longe, com uma maravilhosa tristeza nos seus olhos claros, a ponto de viajar clandestinamente no barco que fez a travessia marítima. Já em terra, o cão acompanhou  a comitiva carcerária até a porta da cadeia, onde iniciou, paciente, sua longa espera pelo querido prisioneiro. A descrição dessa cena é comovente:

Fiquei muito tempo na prisão da cidade. Quando saí para ser levado à minha nova deportação, Febo esperava-me à porta da cadeia, magro e coberto de lama. Seus olhos claros brilhavam com uma terrível doçura. Finalmente, recuperei a liberdade (ou pelo menos o que nesse tempo se chamava de liberdade). Para mim era como se saísse de um quarto sem janelas para entrar noutro sem paredes. Fomos morar em Roma, mas Febo andava triste, parecia humilhado pelo espetáculo da minha liberdade. Ele bem sabia que a liberdade não é uma categoria humana…

Depois de testemunhar as arbitrariedades cometidas pelas forças do Eixo na Rússia, na Finlândia, na Polônia e, sobretudo, no Gueto de Varsóvia, CURZIO MALAPARTE, já convertido ao comunismo,  escreveu sobre a barbárie que deixou atrás de si uma legião de mortos, de feridos e de seres desesperançados. Se a arte imita a vida, como se costuma dizer, o escritor certamente guardou na memória o exemplo de sabedoria dado pelo amigo cão, compondo, a partir dessa singular experiência existencial,  um contundente ensaio sobre a natureza humana.

É melhor não revelar aqui o destino de Febo, que um dia saiu e não voltou mais. Essa tarefa, deveras árdua aos olhos mais sensíveis, fica a critério dos leitores de A Pele e de todos aqueles que lutam contra a violência, contra todas as formas de opressão, contra as injustiças, contra a tortura e o massacre de homens e de animais,  tudo isso na esperança  de que, em meio às cinzas da destruição,  possa um dia florescer a cultura da paz.

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