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Os marsupiais brasileiros

14 de setembro de 2009
11 min. de leitura
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Foto: Reprodução/EPTV.com
Foto: Reprodução/EPTV.com

O cheiro parece separar os gambás dos demais mamíferos. O mau cheiro, bem entendido. ‘Fedido como um gambá’ é a expressão máxima do ser indesejado, o qual não se quer ter por perto. O curioso é que o animal geralmente associado a tal expressão – preto ou marrom com listras brancas no dorso, de cauda peluda, e capaz de usar o mau cheiro como arma quando acuado – não é um gambá, mas um cangambá (Conepatus semistriatus e C. chinga).

Há uma certa confusão entre a imagem de gambá popularizada em livros, em histórias em quadrinhos e no cinema e as espécies assim nomeadas em português, aqui no Brasil. Popularmente se atribuem aos gambás – animais arborícolas, cinzentos, de cauda pelada, da família Didelphidae – as características do cangambá, carnívoro de uma família bem diversa, cuja classificação mudou recentemente de Mustelidae para Mephitidae.

É verdade que os gambás também têm lá seus ‘cheirinhos’, mas os usam mais como marcadores, para atrair parceiros. “Só numa condição de estresse muito grande, os gambás liberam odores fétidos das glândulas localizadas ao lado da cloaca, mas não têm mecanismos para fazê-lo em jatos, como o cangambá, que usa esse recurso com mais frequência”, observa José Carlos Nogueira, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

De qualquer modo, há uma clara linha divisória entre os gambás e a maioria dos outros mamíferos brasileiros, cangambás inclusive: não é só o cheiro, é a forma como se reproduzem. Junto com as quase desconhecidas cuícas e catitas, os gambás fazem parte do diferenciado grupo dos marsupiais.

A diferenciação é antiga – cerca de 130 milhões de anos – e diz respeito ao desenvolvimento do feto. Os marsupiais nascem pelados e cegos – incompletos seria o termo – após uma curta gestação, de uma ou duas semanas. Instintivamente se arrastam até as mamas da mãe, onde permanecerão agarrados até completar seu desenvolvimento, em 2 ou 3 meses. Em várias espécies, as glândulas mamárias, no ventre da fêmea, são protegidas por uma bolsa ou prega de pele chamada marsúpio.

A maioria dos demais mamíferos é placentária, ou seja, após uma gestação mais longa, de meses, os filhotes nascem bem mais desenvolvidos, praticamente prontos para ‘enfrentar o mundo’. Há um terceiro tipo de sistema reprodutivo entre os mamíferos: os que põem ovos, caso dos ornitorrincos e das équidnas. Mas isso já é outra história.

Existem 272 espécies conhecidas de marsupiais no mundo, das quais cerca de 200 – incluindo cangurus e coalas – ocorrem na Austrália e países-ilhas vizinhos. Em torno de 70 espécies são nativas das Américas do Sul e Central e uma – Didelphis virginianus – é da América do Norte, vivendo até na zona temperada do Canadá.

No Brasil são conhecidas 44 espécies, e, por enquanto, apenas uma – a cuíca-de-colete (Caluromysiops irrupta), natural de Rondônia – está na lista oficial de ameaçadas de extinção, na categoria criticamente ameaçada. Mas ainda há muitas lacunas de conhecimento sobre o estado de conservação das espécies já registradas, e estima-se que existam várias outras ainda por serem descritas.

Mesmo as espécies catalogadas passam atualmente por uma reclassificação, com base em novas pesquisas genéticas indicativas dos parentescos entre elas.

Uma das dificuldades é o número reduzido de especialistas. Outra é a observação direta, pois boa parte dos nossos marsupiais é de tamanho reduzido, tem hábito noturno e grande habilidade para se esconder e escapar às armadilhas de coleta.

Os marsupiais mais comuns, distribuídos por quase todo o território nacional, são o gambá-de-orelha-branca (Didelphis albiventris) e o gambá-de-orelha-preta (D. marsupialis). Com distribuição um pouco mais restrita – às áreas com remanescentes de florestas primárias e secundárias da Mata Atlântica e da Mata de Araucária – também é nativo do Brasil o gambá-comum (Didelphis aurita).

Os três são abundantes, embora caçados para consumo de subsistência e por invadirem galinheiros e viveiros. Na realidade, eles se beneficiam do ambiente alterado pelo homem, que significa oferta concentrada de alimentos e abrigo. Os gambás são onívoros – comem ovos, filhotes de aves, invertebrados, frutas, lixo e o que mais encontrarem à disposição – e se entocam em qualquer espaço vago, sobretudo em tetos, lajes e muros.

Em média, os gambás têm 35 cm e 1,5 kg. A cauda é longa e preênsil, isto é, serve como uma ‘mão’ a mais nas escaladas de árvores ou de edifícações. Chegam aos 7 anos em cativeiro, mas a vida livre é bem mais difícil – e curta – por volta de 2 anos. Não são muito rápidos, nem para fugir, uma dificuldade associada ao seu sistema de termorregulação pouco eficiente.

São predados por corujas, mamíferos carnívoros e serpentes. De hábitos solitários, orientam-se pelo cheiro para encontrar parceiros. Por isso fazem ‘trilhas’ de odores nos locais por onde passam, usando saliva e substâncias secretadas pelas glândulas das axilas. As ‘trilhas’ são mais fortes nas épocas de acasalamento, que podem ocorrer duas vezes por ano.

As ninhadas são grandes, de 7 até 10 ou 12 filhotes. E, se encontram tetas, ficam todos pendurados na mãe por pelo menos 60 dias, quando então começam a viajar também no dorso. Os mais fracos caem e viram presas, cumprindo um importante papel na cadeia alimentar. Os mais fortes crescem até se tornarem independentes, cerca de 100 dias após o nascimento.

Menores do que os gambás e muito graciosas, as cuícas também são quase todas arborícolas, movimentando-se discretamente pela vegetação, com ajuda das mãos bem articuladas e da cauda preênsil. Ainda que tenham pouca carne, algumas são caçadas como alimento na Amazônia, caso da mucura ou mucura-chichica (Caluromys philander).

Conforme a espécie, a coloração varia em tons de marrom e cinza, com partes pretas e brancas, eventualmente servindo como ‘marca registrada’ como as duas manchinhas brancas na testa da cuíca-quatro-olhos (Philander opossum) e da cuíca-quatro-olhos-cinza (Philander frenatus).

Uma única espécie – a cuíca-d’água (Chironectes minimum) – vive junto a cursos d’água e alimenta-se preferencialmente de peixes. Ela tem uma particularidade, indicativa de sua adaptação ao ambiente e ao meio de vida, conforme explica o pesquisador José Carlos Nascimento: a bolsa no ventre das fêmeas tem a abertura voltada para baixo e elas conseguem fechá-la voluntariamente. Assim, quando mergulham para pescar, mantêm um pouco de ar para os filhotes, que, protegidos, não se molham, nem se afogam.

As demais cuícas não têm exatamente uma bolsa, têm pregas de pele laterais, que ajudam os filhotes a se manterem agarrados às glândulas mamárias, cujos músculos são reforçados para suportar seu peso. As menores cuícas, como as do gênero Gracilinanus, pesam meros 20 a 30 gramas quando adultas. E mesmo assim chegam a ter ninhadas de 12 filhotes!

Na região Nordeste, conforme lembra o zoólogo Ivan Sazima, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), os pequenos marsupiais do gênero Monodelphis são chamados genericamente de catitas, mesmo nome comum atribuído aos camundongos. As catitas também vivem no solo, alimentando-se de invertebrados e frutinhas caídas na serapilheira, como os roedores.

Arborícolas ou terrícolas, abundantes ou raros, os marsupiais brasileiros estão na mira de novos grupos de pesquisa, preocupados em avaliar os efeitos da fragmentação florestal sobre suas populações. Uma dessas pesquisadoras é Flávia Rocha, do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), que transformou esses animaizinhos em pequenos detetives ecológicos, no Pontal do Paranapanema, extremo Oeste de São Paulo.

Durante 2 anos, Flávia armou 23 mil armadilhas, sempre à noite, nas quais caíram 799 animais de 9 espécies. Destas, 5 são marsupiais. Cada animalzinho capturado foi medido, ‘doou’ um pouco de sangue para pesquisas, recebeu um brinco de identificação, e foi solto novamente. Vários foram recapturados, de 3 a 10 vezes.

Com todos os dados – mais um estudo da paisagem da região, feito por Alexandre Uezu, também do IPÊ, com base em imagens de satélite, mapas e fotos aéreas – a pesquisadora pôde avaliar a diversidade de pequenos mamíferos nos diversos fragmentos florestais do Pontal e a resposta de cada espécie ao isolamento decorrente da fragmentação (quando as matinhas deixadas em pé são cercadas de pastagens ou áreas agrícolas ou cortadas por estradas).

Segundo Flávia, o Parque Estadual Morro do Diabo, com 34 mil hectares, é o único fragmento que suporta uma alta diversidade de pequenos mamíferos, sendo que lá os animais apresentavam-se mais saudáveis, com tamanho e peso maiores. Também foram observadas ninhadas mais numerosas, de 9 a 10 filhotes por fêmea, enquanto nas matinhas menores e isoladas, fora do parque, 90% das ninhadas eram de 5 filhotes ou menos.

“O gambá-de-orelha-branca, por ser generalista, parece ter se beneficiado da fragmentação, mostrando-se dominante em todos os fragmentos, exceto no parque”, observa. “Para as cuícas, distâncias superiores a 750 metros, entre um fragmento e outro, são intransponíveis, enquanto para o gambá o isolamento ocorre acima de 1,5 km”.

A situação é particularmente crítica para espécies que circulam exclusivamente pelo alto das árvores. Elas podem até se movimentar entre os fragmentos, se a mata é secundária e há árvores pioneiras, como as embaúbas. Mas se a vegetação é mais esparsa, o fragmento se transforma numa verdadeira ilha. “E descobrimos que as cuícas-de-quatro-olhos (gênero Philander) parecem ser particularmente sensíveis à falta de água”, continua a pesquisadora. “Mesmo que não sejam semiaquáticas, como a cuíca d’água, elas se ressentem do ambiente mais seco dos fragmentos florestais, tanto que só as capturamos no parque e sempre em trilhas mais úmidas”.

Ainda falta analisar o material genético dos animais capturados para ver o nível de consanguinidade e outros parâmetros indicativos dos impactos do isolamento sobre as populações. E armar uma nova leva de armadilhas, no próximo ano, para complementar os dados obtidos, ampliando os estudos. Porém, conforme conta Flávia Rocha, já foi possível verificar que “mesmo que tenham alimento suficiente, as populações isoladas sofrem com mais competição. Entre elas, encontramos mais animais machucados e doentes, filhotes com malformações, filhotes cegos, e com mais parasitas”.

Um pouco de (pré) história

Por Evaristo Eduardo de Miranda, doutor em Ecologia, pesquisador da Embrapa Monitoramento por Satélite

“Um novo animal como que monstruoso, que tinha o corpo e focinho de raposa, a garupa e os pés de trás de macaco e os da frente quase como de homem, as orelhas como de morcego. E sob o ventre um outro ventre de fora como uma bolsa, onde esconde seus filhotes depois de nascidos; nunca os deixa sair, até quando eles mesmos estejam aptos a nutrir-se, exceto quando querem mamar”. Essa descrição de uma aparente aberração, feita em 1507, pelo cronista italiano Giovanni da Empoli, refere-se simplesmente a um gambá, coletado na embocadura do rio Amazonas pelo navegador castelhano Vicente Pinzon. A Europa encontrava um marsupial, cerca de 60 milhões de anos após a extinção do grupo naquele continente.

A principal diversificação dos marsupiais começou no que hoje é América do Sul e espalhou-se pelo mundo. Ao longo de milhões de anos, no entanto, as espécies foram desaparecendo da Europa, Ásia e América do Norte. Subsistiram apenas na Austrália, onde não há placentários endêmicos, e também na América do Sul. Os mamíferos marsupiais e os placentários competem pelos mesmos nichos ecológicos. Os segundos são mais especializados, atingem maiores tamanhos e têm levado a melhor nessa disputa.

Após separar-se da África, o continente sul-americano permaneceu como uma grande ilha isolada no meio do oceano. Os marsupiais proliferaram. Ainda não existiam felinos, nem leões, nem gatinhos. Os mamíferos carnívoros eram apenas os marsupiais. Um deles – Thylacosmilus –, então muito comum, parecia um tigre-dente-de-sabre. Era um parente distante do tigre-da-tasmânia (Thylacinus cynocephalus), extinto no século 20. Viveu entre 5,3 e 1,6 milhões de anos atrás e media mais de um metro. Restaram grandes quantidades de fósseis, dispostos de forma a sugerir que a espécie caçava em grupo.

Com a formação do istmo do Panamá, unindo as Américas, há cerca de 3 milhões de anos, criou-se uma ponte terrestre, por onde se deu uma invasão dos mamíferos placentários vindos da América do Norte, dentre os quais os felinos. Muitos marsupiais sul-americanos se extinguiram, por competição e predação. Sobrou a família Didelphidae. Alguns gêneros dessa linhagem conseguiram cruzar a ponte no caminho inverso, colonizando com sucesso a América Central. E pelo menos uma espécie de gambá chegou a se estabelecer na zona temperada dos Estados Unidos e Canadá: Didelphis virginianus.

Gambás X Cangambás

Nomes comuns: gambá, saruê, mucura, micura, micurê sariguê, sariguéia, timbu, cassaco.

Nomes científicos: Didelphis albiventris, D. aurita e D. marsupialis.

Características: marsupiais; arborícolas; de hábitos noturnos e solitários; em média 35 cm e 1,5 kg; pelos esparsos e desiguais no corpo, de cor acinzentada; orelhas grandes; cauda preênsil e pelada; não usam odor como ‘arma’.

 

Nomes comuns: cangambá, zorrilho, jaritacaca, jaguaritaca, iritataca, tacaca

Nomes científicos: Conepatus semistriatus no Nordeste e Sudeste, e C. chinga no Rio Grande do Sul.

Características: mamíferos placentários; terrícolas; de hábitos noturnos e solitários; em média 40 cm e 2 a 3,5 kg; pelagem densa, preta com duas listras brancas em todo o dorso; orelhas pequenas; cauda peluda; usam jatos de odor fétido como verdadeiras ‘bombas químicas’.

Fonte: EPTV

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