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Meu cão, meu filho

6 de julho de 2009
4 min. de leitura
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Por Ana Cardilho
em colaboração para a ANDA

Um artigo da psicóloga porto-alegrense Marta Rolim, publicado na semana passada em Zero Hora, inspirou debates no Rio Grande do Sul sobre até onde vai o amor a bichos de estimação. Os questionamentos alertam para o fato de cães e gatos estarem sendo humanizados pelos donos. Em Caxias, homens e mulheres não medem esforços para presentear os animais com roupas, joias e tratamentos estéticos exagerados. Em contrapartida, as pessoas estariam deixando de dar atenção a quem realmente precisa.

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Eu gosto quando meu dono me coloca no sofá. Ele lê o jornal distraído, coça minhas costas, e eu cochilo sentindo o cheiro da tinta do jornal, o perfume do café que ele vai tomar, devagar, sem açúcar, e com um pouquinho de leite (de soja). Gosto quando ele espreguiça, se levanta e pega minha guia. Hora de passear, hora de bater as patinhas na rua atrás de cheiros e histórias interessantes.

Outro dia, encontrei uma cachorrinha que estava vestida. Até aí já vi modelitos piores e melhores. O que me chamou a atenção é que, além do vestido, que estava visivelmente apertado, segurando os movimentos de suas patas traseiras, ela usava uma touca, cor-de-rosa para combinar com as flores da estampa do vestido, brincos colados nas orelhas, sapatinhos vermelhos e a dona, pasmem, havia passado uns brilhos no focinho dela. Nem pude chegar muito perto, tamanho o mau humor em que ela estava. Rosnava e latia demonstrando que não se sentia nada bem. Meu dono parou para conversar com a dona dela e, telepaticamente, a cachorrinha vestida para matar me contou que estava voltando de uma festa de aniversário onde todos os cachorros convidados foram fantasiados com as roupas mais estranhas. Contou-me, ainda bem brava e sem deixar que eu me aproximasse, que os donos presentes na festinha faziam com que os cachorros andassem sobre as patas traseiras, sentavam os bichos em cadeiras tentando fazer com que eles não se parecessem mais com animais e sim com crianças.

Cheirar os colegas? Nem pensar, disse-me ela. Os donos não deixavam, não queriam esses péssimos hábitos sem levar em consideração que, desde o nosso primeiro ancestral lobo, cachorro que é cachorro cheira o outro. É pelo faro que conhecemos a história, que sabemos como vai a vida de nosso colega, seu sexo, se ele é saudável, feliz, o que come, se dorme bem, se é feroz… Enfim, informações tão preciosas para quem, afinal, não fala.

Contou-me que na festinha soube que alguns colegas estavam sendo treinados, para dar as patinhas, sentar e deitar, em línguas diferentes. Eles aprendem a receber ordens em inglês, alemão e principalmente em chinês que, dizem, será a língua do futuro. Outra novidade: sessões de terapia com o dono e o cachorro. Durante cinquenta minutos, sob a supervisão do terapeuta, eles discutem a relação e tentam fechar acordos para uma convivência de melhor qualidade.

A cachorrinha vestida de dondoca estava com muito medo de ter que passar por essas sessões de terapia e mais medo ainda se elas fossem feitas em grupo. Já imaginou? Cinco donos e cinco cachorros juntos, discutindo as relações? Misericórdia!

Eu estava lá ouvindo minha colega quando percebi que meu dono estava entusiasmado com a ideia dos sapatinhos que ela usava. Perguntou até o endereço da loja onde eles foram comprados! Arrepiei, da orelha ao rabo. Já imaginou se meu dono resolve tingir meu pelo, fazer com que eu ande de sapatos coloridos e se me coloca uma roupa? Depois disso vai querer terapia também.

Eu não vou facilitar, não. Se ele chegar com sapatinhos hoje em casa vou fingir que nem liguei e depois, na madrugada, com meus dentes poderosos, eu os destruo. Se ele comprar outros, outros serão roídos, até que meu dono entenda que eu sou um cachorro que tem as patas no chão.

Vou cheirar os colegas na rua, fazer festinhas para quem chega, rosnar para quem eu sinto que não gosta de animais, vou correr atrás do meu rabo, feliz da vida, vou uivar pra lua cheia, me coçar, com ou sem pulgas, vou cochilar em vários momentos do dia e ficar de barriga pra cima esperando um bom carinho.

Afinal, sou um cachorro e tenho muito orgulho disso!

Ana Cardilho é escritora e jornalista. Com um olho na realidade e outro na prosa imaginária conta com mais de 20 anos de experiência em rádio e TV, tendo feito reportagens, edição e fechamento de telejornais e programas, e é ficcionista.

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