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Os animais escolheriam alguma religião?

23 de abril de 2009
3 min. de leitura
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Então passou a tal da Páscoa, e muitos colocaram ‘Feliz Páscoa’ e ‘Páscoa é renovação’ em seus MSN, mas juro que me esforcei para achar, em meio ao tradicional agito que antecede o pacote data-comemorativa-feriadão-comilança, algum brilho que não fosse ouro de tolo. Para os animais, foi somente mais uma subida na montanha-russa do gráfico dos abatedouros, com caminhões extra levando peixe ‘fresco’ para as feiras promovidas pelas paróquias ou prefeituras – já que na Sexta-feira Santa não é permitido comer carne, somente peixe… Se os animais tivessem religião, será que eles escolheriam uma fé que inclui a Páscoa?

Apesar de toda a ilusão envolvendo coelhos, ovos, ressurreição, Pessah, crianças usando orelhonas de papelão e beatas beijando pés de estátuas de gesso, as coisas permaneceram iguais ao ano passado. No Centro de Porto Alegre, os índios vendiam as mesmas cestas ‘artesanais’ que estavam disponíveis nas lojas de R$ 1,99, e só pela cor da palha se via que não tinham sido feitas por eles, e sim por alguma criança chinesa ganhando centavos de dólar. Boicote à China? “Ah, os veganos são obcecados por vídeos de peles chinesas”. De resto, lojas de departamento lotadas, corre-corre, supermercados com filas, gente com pressa, muitos acidentes nas estradas. Muita renovação.

A Feira do Peixe, por mim batizada de ‘Farra do Peixe’ em reportagem publicada aqui na ANDA, funcionava 24 horas por dia na Capital gaúcha, com quase uma centena de bancas de peixe fresco, congelado, frito, assado e até vivo – esse era o mais azarado de todos. As carpas de cerca de oito quilos eram retiradas de tonéis à unha, colocadas em sacolas, pesadas e pagas, e o freguês levava o produto para casa ainda se debatendo. Mais fresco, impossível. Uma ou outra acabava no meio-fio da calçada, mas prontamente era capturada e devolvida pela atenta população. A tal da multiplicação dos peixes, versão 2009.

Feira do Peixe

Tudo isso porque na Sexta-feira Santa os cristãos não podem comer carne… então comem peixe. Não vou entrar no mérito dos mitos nem do simbolismo, até porque isto não determina o incremento do comércio na semana da Páscoa, as pessoas simplesmente agem como autômatos, e ainda têm orgulho de suas liberdades religiosa e de pensamento. Qualquer vegetariano já ouviu a frase-clichê “… mas nem peixe?”, graças a essa ideia que forjou a mentalidade de gerações de pessoas sobre a ‘não carne’ dos peixes. “Também sou vegetariano, só como peixe” ou “parar de comer carne tudo bem, mas peixe…” são outras excrescências que têm origem na grande desfeita que é não comer nem peixe na tal Sexta-feira Santa.

Pois durante o feriadão estive visitando a casa dos meus pais no Interior do Estado, coisa que não fazia há quase dois anos, em uma cidade megacatólica. O grande momento do final de semana era o fetiche tradicional de ir à igreja beijar a estátua do Cristo morto. Fiquei com minha esposa na praça, em frente à igreja, enquanto minha mãe cumpria o tal ritual – mais por medo de punição divina do que por fé, se eu a conheço bem.

Eis que na volta ela me conta que, graças ao novo vigário, um frei ‘prafrentex’, a coisa foi bem diferente neste ano, para indignação das beatas mais carolas. Em frente ao altar havia um caixão de defunto, semicerrado – no lugar do tradicional caixão de vidro, e somente ao se aproximar a pessoa reparava que não estava lá a estátua de gesso em tamanho natural de Jesus morto. Conta ela que na altura do rosto, dentro do caixão, havia um espelho, escrito ‘como eu estou?’. Um convite à reflexão, talvez inspirado na instalação ‘Smile Box’ de Yoko Ono. Um tanto quanto bizarro, ainda mais em uma cidade medonhamente conservadora e tradicional.

Pois eu ouvia seu relato enquanto via as famílias entrando e saindo da igreja, alguns já comendo crepes de calabresa, ou pensando no belo assado que os esperava em casa. E me ocorreu – será esta a religião que os animais escolheriam, se fosse o caso, algum dia?

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