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A Frente de Libertação Animal e os (Des)Caminhos do Movimento pelos Direitos Animais no Brasil - Parte II

5 de abril de 2009
6 min. de leitura
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Mais do que não ter trazido nenhuma vitória parcial para o movimento, tal ação pode ter sido extremamente danosa para sua expansão no contexto brasileiro, especialmente se servir de inspiração para outras ações igualmente precipitadas e impensadas.

Para além dos equívocos conceituais apresentados pela ação, ocorreram também equívocos de avaliação não menos graves. Percebe-se nela um desconhecimento da realidade social, política e histórica na qual estes ativistas estão inseridos. Desconhecimento este grave para qualquer movimento social.

Como já disse em outro texto , quer tenhamos consciência disso ou não, quer queiramos ou não, o movimento pelos direitos animais é um movimento político. Erros de avaliação, em movimentos políticos, podem ter conseqüências graves, especialmente quando não conhecemos as forças que se interpõem contra nós. Um exemplo didático pode ser encontrado na Guerrilha do Araguaia, um triste e grotesco episódio da resistência contra a ditadura militar no Brasil. Nesse episódio, algumas dezenas (não chegavam a 100) de militantes do PCdoB se embrenharam na região do Araguaia contando em recrutar camponeses que viviam na região para combater a ditadura, sobreviver na base da guerrilha, desgastar o regime e assim ganhar adeptos e estimular outros levantes para enfim realizar uma revolução no Brasil. Um levante dessas características foi bem sucedido em Cuba, em condições históricas e geográficas muito diferentes. Tal missão já devia se antever suicida com uma breve análise de dois fatores da história do Brasil: a cultura popular conservadora e o a violência na repressão a movimentos contestatórios. Além do absurdo de tentar fazer do Brasil, país de dimensões continentais, uma nova Cuba. O resultado foram mais de 70 mortes. Mesmo assim, o que foi um erro grosseiro de avaliação que resultou em mortes desnecessárias – portanto um crime do PCdoB contra seus próprios militantes – é irresponsavelmente comemorada por este partido, até hoje, como um ato heroísmo .
 
No caso do movimento pelos direitos animais, pode-se supor que bem para a nossa causa, sua expansão, sua irradiação pela sociedade e seus militares uma ação como um incêndio proposital poderia acarretar, no contexto atual e dentro de uma análise histórica do tratamento – repressivo – que o Estado brasileiro dá a movimentos contestatórios. Vamos lembrar que esse histórico de repressão não é conjuntural, nem tampouco se encerrou com a democratização. Ainda hoje há exemplos claros de violência do Estado e também das classes dominantes contra movimentos sociais. Basta lembrar episódios como o massacre de Eldorado dos Carajás. Será que precisamos mesmo ter agentes da Abin investigando nossas vidas, grampeando nossos telefones, e seguranças de frigoríficos e laboratórios armados e dispostos a matar? A última coisa que precisamos, no Brasil, é uma lei antiterrorismo que torne passível de criminalização ou estigmatização qualquer tipo de protesto contra a exploração animal ou divulgação de nossos ideais. Contudo, não precisamos ir tão longe. O recurso à força só aparece quando o controle ideológico está ameaçado.No regime democrático, a maior arma contra a contestação social se dá na luta pela opinião pública, com espaço privilegiado para a imprensa – basta observar o cerco dos meios de comunicação aos movimentos sociais como o dos Sem-Terra e ver como suas ações são sempre retratadas de forma negativa, mesmo quando sua causa é justa. Outro exemplo esclarecedor é a forma como um protesto de mulheres sem-terra que destruiu sementes transgênicas numa fazenda experimental no Rio Grande do Sul em 2006 foi retratado como mero vandalismo , ou como a imprensa retrata os protestos envolvendo a empresa Aracruz Celulose, que promove monoculturas e desloca povos indígenas de suas terras, e no entanto aparece sempre como uma empresa responsável, geradora de riqueza e empregos, vítima de militantes irracionais e obscurantistas…

O nosso movimento ainda é muito fraco e desconhecido. Não temos força para suscitar um debate amplo na sociedade, não somos vistos como interlocutores pela maioria. Passamos muitas vezes por excêntricos e sentimentais. Teria sido muito fácil, se a imprensa, o governo e as empresas quisessem, colocar todos os ativistas no mesmo patamar e rotular a todos de “vândalos” ou “terroristas”. Desse ponto de vista, é até bom que a notícia não tenha repercutido.

Os motivos de preocupação não cessam, entretanto, porque temos visto outras ações impensadas por parte de militantes de defesa dos animais, como o ataque a um laboratório da USP em novembro de 2008 , destruindo uma pesquisa que não envolvia animais, ou a “libertação” de macacos de um mini-zôo em Porto Alegre em setembro de 2005, que na verdade nada mais foi do que a abertura das jaulas.  Os animais não foram levados para um lugar adequado e foram expostos ao perigo fora de suas jaulas. Ambas as ações foram assinadas como ALF, mas nenhuma delas estava em consonância com os preceitos da rede, acima expostos.

Todas essas ações expõem a alienação e o despreparo de uma parte dos militantes da causa animal. Infelizmente, muitos deles são mesmo excêntricos e sentimentais, não se dão ao trabalho de estudar os fundamentos de sua causa, conhecer a história de seu país e refletir sobre qual ativismo seria realmente adequado neste momento, para expandir a causa animal, e dentro das estruturais sociais, culturais e políticas brasileiras. Isso eu constato no convívio com muitos vegetarianos. A recente crise econômica tem dado asas a essas reações sentimentais, que festejam o fechamento de frigoríficos como uma grande vitória, quando nada mudou na forma como a sociedade encara os animais – suas carcaças apenas ficaram mais caras. O mesmo tipo de reação irrefletida foi visto na figura de alguns – felizmente minoritários – que aplaudiram um incêndio que não salvou vidas e poderia ter causado uma tragédia.

Ativismo de qualquer natureza requer conhecimento: sobre a causa e seus fundamentos filosóficos, sobre a história do movimento, sobre a história do país em que se atua, sobre as formas mais eficientes de levá-la ao público, levando em consideração os conhecimentos anteriores, e sobre como combater com eficiência e coerência aquilo a que tais ativistas se opõem. Ronnie Lee, o fundador da ALF, passou o período que esteve preso estudando o exemplo de outros movimentos políticos, e foi a partir desses modelos que ele idealizou a Frente de Libertação Animal .

Aqui seria proveitoso nós destacarmos a diferença entre a história política do Brasil e da Grã-Bretanha, e a diferença do contexto da fundação da ALF em 1976, num país amplamente democrático, com rica história de luta social e um movimento de defesa dos animais antigo e consolidado, para a história do Brasil atual, uma democracia recente, com histórico de repressão política, movimentos sociais débeis e quase nenhuma tradição de respeito à vida animal. Esta brevíssima comparação já serve para demonstrar as diferenças fundamentais que tornam desaconselhável o recurso às ações diretas inspiradas na ALF, especialmente ações tão deturpadas e banalizadas como as que temos visto aqui no Brasil. Espero que elas não sirvam de incentivo para atitudes ainda piores, de recurso à violência física em defesa dos animais. Nesse ponto, gostaria de lembrar o ponto de vista bastante lúcido de Gary Francione, que critica o recurso à execração fácil daqueles que lucram com a exploração animal – vivissectores, pecuaristas, etc. – esquecendo que suas atividades são aceitas, incentivadas e desfrutadas pelo amplo conjunto da sociedade . Aquele que paga pela carne não é menos culpado pela morte do animal em seu prato que o pecuarista que o criou, o abatedor que o matou ou o açougueiro que o desmembrou.

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