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As camadas da opressão

12 de fevereiro de 2009
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A questão da dominação e do poder freqüentemente é analisada sob uma perspectiva maniqueísta. Especialmente na esfera política – seja tradicional, dos partidos, sindicatos – seja dos movimentos sociais e organizações dificilmente se encontra a tentativa de uma análise ponderada e justa. Por ponderada e justa não me refiro a imparcial, nem nivelador. Pois é impossível – e indesejável – não ter uma opinião a respeito de um determinado assunto, e muito menos que todas as opiniões se equivalham.

Coisa muito diferente é supor que um dos lados estará sempre com a razão, menos ainda supor que o poder e a dominação são caminhos lineares. Na história da humanidade, a opressão se manifesta em diferentes sentidos, e muito frequentemente aquele que é o oprimido numa determinada situação torna-se o opressor em outra. Em certos casos, isso se dá por sucessão lógica, quando os ventos mudam de direção e a ordem social é subvertida. Em outros, e eu diria que muito mais frequentemente, oprimido e opressor convivem simultaneamente no mesmo indivíduo ou grupo de indivíduos. Alguns exemplos são óbvios: racismo, sexismo, xenofobia, preconceito religioso são males que atingem a sociedade de modo muito democrático e, de fato, os grupos sociais desfavorecidos são muito vulneráveis a eles, pois sua situação de exclusão social favorece a competição pelos escassos recursos e a busca de “bodes expiatórios”. E também frequentemente os grupos dominantes sabem explorar muito bem essa situação. Pensemos em exemplos como o da Alemanha nazista, em que os dissabores de um país arruinado foram creditados aos judeus – aproveitando-se, naturalmente, da presença histórica do antissemitismo naquele país. O caso da discriminação e violência contra mulheres entre as classes trabalhadoras, o preconceito popular contra imigrantes na Europa (onde os partidos neofascistas colhem a maior parte de seus votos junto às classes média e baixa). São inúmeros os exemplos. Em cada grupo marginalizado na sociedade pode-se encontrar uma dose significativa de preconceito e violência latente que não necessariamente se voltará contra o opressor, mas será canalizado para subjugar um outro grupo.

A explicação para esse fenômeno certamente não é uma tarefa simples, pois ela está ligada a diversos fatores. Não só a própria essência do poder, em que ele consiste e porque o ser humano o persegue, mas também fatores históricos, sociais e econômicos. Tal questão ficará mais clara se, em vez de uma explicação abstrata, fornecermos um exemplo concreto. No famoso caso da Alemanha nazista, o antissemitismo se explica por uma histórica intolerância religiosa que, desde a Idade Média, relegou os judeus às atividades comerciais e financeiras. Não podemos esquecer que, na época feudal, a principal fonte de riqueza era a posse de terra. Os judeus, por sua religião, não tinham acesso a ela, limitando-se ao comércio e ao empréstimo de dinheiro. Daí sua fama de usurários (sovinas, mesquinhos, gananciosos, e toda sorte de adjetivos de sentido semelhante), registrada em textos tão antigos quanto O Mercador de Veneza, de William Shakespeare. Os judeus prosperaram nessa atividade e, com o advento do capitalismo, ascenderam a posições importantes na hierarquia econômica da sociedade – o que, por sua vez, os tornou alvo do maior número de teorias conspiratórias possíveis, já que na sociedade capitalista são os detentores do poder econômico que dão as cartas. Muitos europeus cristãos deveriam, naquela época, se perguntar por que, nas suas sociedades, eram aqueles “estrangeiros” que ocupavam postos de destaque em ofícios lucrativos, sem suspeitar que seu próprio preconceito alimentara tais diferenças. Desse modo, a posição social privilegiada dos judeus (não todos, é importante ressaltar), associada à discriminação imemorial por eles sofrida, ambas intimamente vinculadas, tornaram-nos o alvo perfeito da ira da Alemanha humilhada e arruinada após a Segunda Guerra Mundial.

A história não termina aqui. O Holocausto judeu fortaleceu o reclame antigo desse povo por um Estado próprio, concretizando-se no Estado de Israel, nascido em 1º de janeiro de 1948, sob os auspícios da ONU e das duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética. Não se tratou, como muitos dizem, de “caridade com a terra alheia”, já que desde o século XIX os judeus emigravam para a Palestina, e a divisão territorial feita pela ONU respeitava os limites das ocupações judaica e muçulmana. O resultado, porém, todos conhecemos. Os oprimidos de outrora tornaram-se opressores. O maniqueísmo, porém, não permite ver que muçulmanos também cumpriram o papel de agressor ao longo da história, e que muitos deles sequer reconhecem o direito dos judeus ao Estado de Israel – ainda hoje. Da mesma forma que o conflito externo com Israel ajuda a esconder a opressão interna sofrida pelo povo palestino. Seus líderes não são heróis da liberdade. Muitos deles não passam de indivíduos corruptos, autoritários e ineptos – como, aliás, a maioria esmagadora dos líderes políticos do mundo.

Mas, afinal, por que escrevo sobre isso num espaço voltado para debater os direitos animais?

Porque na escala da opressão, os animais não-humanos ocupam o último degrau. É na exploração animal que a quase totalidade da humanidade, opressores e oprimidos, se igualam, se irmanam. Embora, como propriedade que são, os animais não-humanos sejam mais “acessíveis” aos poderosos do mundo[1], o fato é que quase todos os grupos sociais praticam a exploração animal ou, em alguma medida, se beneficiam dela. A exploração animal, dominação humana sobre outros animais, é talvez a ideologia mais difundida e mais amplamente aceita do mundo. Quase todos aceitam-na não apenas como natural e desejável, mas igualmente como justa e correta. Os seres humanos desvalidos quase sempre podem consolar-se em saber que, ao menos, não são animais (e, quando vítimas de uma injustiça particularmente aberrante, reclamar que não podem ser tratados como tal). Estilos de vida e culturas inteiras se formaram em torno da escravidão de animais não-humanos. Não surpreendentemente, a cultura mais antropocêntrica do mundo – a judaico-cristã – teve origem entre povos pastoris. Os animais não-humanos são os maiores explorados da terra. São considerados menos que os escravos ou os trabalhadores remunerados; seus direitos são nulos. Eles estão em último lugar na escala, também, porque eles são o único grupo oprimido que não pode se levantar contra seus opressores. Isso torna o nosso papel, como defensores dos direitos animais, ainda mais importante. E nossa responsabilidade, ainda maior.
Claro, numa ironia final, nós, humanos, sempre podemos alegar que, se pudesse, a vaca faria o mesmo conosco. E isso ainda nos faz sentir superiores a ela – nós temos o poder de subjugá-la, ela não; nós triunfamos – reinamos – sobre todos os outros animais. Sem perceber, com esta posição, estamos chancelando a ideia de que aquele que pode explorar, escravizar, submeter, matar, é um ser superior. E, se não o fizer, é um tolo. Evidenciando portanto que, por mais que não reconheçamos isso publicamente, nossa sede de poder nos torna uma espécie que não é apenas predisposta à violência, mas glorifica-a.

Nosso comportamento com os animais não-humanos ratifica tudo o que fazemos entre nós mesmos. Se está correta a moral que aplicamos a todo o reino animal, então a ética comanda que sejamos brutais e vis entre nós mesmos – e que não há nada de injusto e imoral nisso. E é justamente por isso que nenhum ser humano que se levanta contra as injustiças provocadas contra outros seres humanos jamais poderá se mostrar indiferente ao sofrimento, à exploração, à objetificação dos animais não-humanos sem se mostrar portador de uma filosofia ética e política míope – e, em última instância, portardor de uma atitude incoerente e hipócrita.

O veganismo é, portanto, não apenas uma IMPOSIÇÃO ÉTICA como afirmei em meu texto anterior. Ele é, igualmente, uma IMPOSIÇÃO POLÍTICA a todos os que combatem as injustiças do mundo e recusam a ideia de que a injustiça é inevitável e aceitável. A injustiça, a opressão, a dominação humanas, sejam seus alvos outros seres humanos ou animais não-humanos, não podem ser vistas como simples fenômenos da natureza. Elas são construções sociais que podem – e devem – ser abolidas.

[1] E daí alguns fatos interessantes, como o uso da ingestão de proteína animal como indicador de prosperidade econômica ou a falácia de que o vegetarianismo é imoral num mundo assolado pela fome, quando na verdade a maioria esmagadora da carne do mundo vai para o estômago dos abastados.

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