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Livre arbítrio de quem?

27 de janeiro de 2009
5 min. de leitura
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É típico do relativismo tentar relacionar livre-arbítrio e vegetarianismo, nas seguintes bases: o vegetarianismo é uma opção pessoal, que não deve ser defendida como uma posição moral obrigatória. Hoje gostaria de ajudar a desfazer esse mito.

Na minha interpretação, vejo o livre-arbítrio dividido em duas dimensões, uma prática e outra moral.

Do ponto de vista prático, ninguém pode tocar no seu livre-arbítrio, nem outro homem, nem “Deus” (que é invenção do homem). Essa é a tese defendida por Ivan Karamazov, famoso personagem de Dostoievsky. Esse seu pensamento tem uma importância chave no desenrolar do romance Os Irmãos Karamazov. Tal ideia ficou consagrada no aforismo: “se Deus não existe, tudo é permitido”.

Tudo é permitido? De certa forma, sim. Afinal, o ser humano é capaz, materialmente, de fazer tudo aquilo que puder conceber e que não viole as leis físicas. Apenas pela razão (reflexão) ou força (física ou moral) se pode impedir um ser humano de fazer tudo aquilo que lhe aprouver. Simplesmente cabe a ele decidir o que fazer… Sempre foi assim, e sempre será.

Do ponto de vista moral, porém, o livre-arbítrio tem um limite claro, indiscutível, que é a liberdade e a integridade do próximo. Qualquer ato que viole isto é imoral, inaceitável, e justifica uma limitação do livre-arbítrio. Diferente do que pensava Dostoievsky, esse limite não vem de Deus, mas do próprio ser humano: da razão, da empatia e do impulso em preservar a sociedade e seus indivíduos.

O desafio que temos é estender esse aspecto moral para os demais animais: fazê-los serem reconhecidos como sujeitos portadores de direitos fundamentais à vida, à liberdade e à integridade (física e psíquica). Podemos fazer isso ao traduzir nossa moral (histórica e social) em princípios éticos universais.

Clarificando: do ponto de vista prático, o livre-arbítrio do onívoro é o mesmo do assassino ou do estuprador. O assassino ou o estuprador têm a plena liberdade, dentro de sua mente e de suas forças, para decididir se vão matar o estuprar – ninguém pode nem é capaz de manipular suas mentes e seus impulsos. Mas, do ponto de vista da moral, dentro de uma ética individual, e em defesa da sociedade, é errado atribuir ao assassino ou ao estuprador essa liberdade de ação. Se eles incorrem nela, devem ser punidos, e a sociedade deve buscar prevenir, pela educação e difusão de valores, tal choque de liberdades (algoz X vítima). O mesmo vale para o onívoro – a liberdade do algoz não pode se sobrepor à da vítima (ainda que esta seja de outra espécie). Se, porém, ocorre, em algum momento esse choque, devemos, como já disse anteriormente, preservar a liberdade da vítima, não do algoz. A exploração animal é uma liberdade tão legítima quanto a liberdade de assassinar seres humanos ou estuprar mulheres.

Percebo essa concepção dual do livre-arbítrio como coerente com a posição abolicionista. Somos contra o especismo, certo? O que é o ser humano? Um animal. Existe algum freio à liberdade de um animal? Não. Ele segue seus instintos, seus desejos, seus impulsos, suas necessidades. Um leão abate a presa mais frágil, mais fácil de ser capturada, mesmo que seja um filhote. Mesmo animais herbívoros são capazes de comportamentos que nós julgaríamos cruéis – como ferir de morte na batalha pelo direito de acasalar. Isso ocorre também com o ser humano – somos animais, somente. Negar isso seria especismo. Negar nosso livre-arbítrio, também. Ocorre que nós também somos seres morais. Desenvolvemos princípios éticos a partir da razão, da empatia e das nossas necessidades de seres sociais. Essa característica, aliás, não nos é exclusiva. Basta observar outros animais sociais, como outros primatas, golfinhos e elefantes, e perceber que suas sociedades também vivem sob códigos morais[1].

É a moral que freia os impulsos irrefletidos do livre-arbítrio. A moral é uma construção social. Logo, na natureza, sim, tudo é permitido. Na sociedade, não. Por isso, devido a uma percepção limitada, o senso comum entende que a nossa moral só se refere a nós, humanos – nós a estendemos de forma muito limitada aos demais animais, apenas na medida de nossos interesses. A ética, porém, é uma construção racional e, como tal, deve observar princípios universalizáveis – todos os seres que possuem as características relevantes para possuir um direito devem ter este direito respeitado. Como há muito argumentamos, essa característica, que nos obriga a respeitar os direitos humanos fundamentais à vida, liberdade e integridade, é a SENCIÊNCIA e, sendo ela também uma característica dos demais animais, esses direitos – que não são direitos humanos, mas direitos animais – devem ser respeitados na universalidade de sua abrangência – todo o mundo animal.

Por fim, atribuir a nossa moral a uma entidade externa – “Deus” – é uma negação da nossa condição intrínseca de animais e, portanto, uma manifestação de especismo. A sociedade e suas leis não vêm de “Deus”, mas dos humanos, e afirmar o contrário não é um tributo, mas uma ofensa ao ser humano, à sua inteligência e sua razão.

Tentar estender a nossa moral à natureza implica reconhecer, de um lado, nossa condição de igualdade, de outro, nossa dependência – pois sem a natureza nós não sobrevivemos – e, de outro, o nosso poder de interferir nela e modificá-la de forma nociva. Assim, temos que usar com responsabilidade o poder que possuímos e nos abster de lançar mão de qualquer tipo de violência desnecessária contra a natureza (por “desnecessária” me refiro àquela que não é empregada na defesa da nossa sobrevivência imediata). Essa visão da ética implica deixar de abater, torturar, criar, comer e explorar animais. Por isso nós, veganos, devemos rejeitar qualquer discurso relativista que diga que o veganismo é uma questão de livre-arbítrio e opção individual. O veganismo é uma IMPOSIÇÃO ÉTICA.

[1] O tabu do incesto, por exemplo, não existe apenas entre seres humanos. Bonobos, por exemplo, que têm uma sociedade matriarcal onde o principal meio de socialização é o sexo, têm como único tabu sexual a cópula entre mãe e filho do sexo masculino.

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