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Cecilia Meireles: a poesia do sensível e os animais

26 de novembro de 2008
5 min. de leitura
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Costuma-se dizer que de todas as medidas de salvaguarda animal, nenhuma é mais promissora de que a educação.

De fato, pais e professores podem influenciar decisivamente na formação do caráter de uma criança, ensinando-lhe os valores supremos da vida, em que se inclui o respeito pelas plantas e pelos animais. Precisamos muito disso, porque as leis – por si só – não têm a capacidade de mudar as pessoas.

Cães apedrejados, gatos envenenados, cavalos espancados, galinhas degoladas, porcos esfaqueados, pássaros engaiolados… o sofrimento animal parece não ter fim.  Mas de que jeito  mudar nossa caótica realidade social senão por meio de um processo de aprendizado verdadeiramente compassivo?  A falta de senso moral, todavia, continua sendo uma das principais causas de violência, seja contra os homens, seja contra a natureza, seja contra os animais.

Plutarco, na Grécia Antiga, insistia na necessidade de propiciar aos jovens uma formação pedagógica vinculada aos princípios da ética, priorizando o respeito à vida. O pedagogo Comenius, há quatrocentos anos, ensinava as crianças a conhecer a amar a natureza.  Já em nossa época, com a maestria que lhe é peculiar, o educador Rubem Alves afirma que a sabedoria precisa de esquecimento: “Esquecer-se é livrar dos jeitos de ser que se sedimentaram em nós, e que nos levam a crer que as coisas têm de ser do jeito que são”.

Tal frase resgata a dimensão poética de um dos mais fascinantes heterônimos pessoanos, Alberto Caeiro, que propunha um novo olhar sobre as coisas do mundo: “Não basta abrir a janela para ver os campos e o rio/ Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores/ Para ver as árvores e as flores é preciso também não ter filosofia nenhuma/ Procuro despir-me do que aprendi/ Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram/ E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos”.

Em meio à era da globalização, em que a violência atinge, sobretudo, aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade, há de se dirigir um novo olhar ao Outro, seja ele quem for, independentemente de sua configuração biológica, porque estar vivo é uma experiência única e preciosa. Daí a necessidade de os valores compassivos serem transmitidos às crianças, desde cedo, porque elas ainda têm os olhos puros e encantados. Um dos caminhos para esse ideal é ensinar, na escola, a lição dos bons autores.

Cecília Meireles (1901-1964), na literatura brasileira, talvez tenha sido a escritora que melhor compreendeu a importância da palavra como instrumento do agir sentimental.  Sua belíssima “Sugestão”, inserida em Flor de Poemas, é um exemplo incessante dessa busca: “Sede assim – qualquer coisa/ serena, isenta, fiel/ Flor que se cumpre/ sem pergunta/ (…) Igual à pedra detida/ sustentando seu demorado destino/  E à nuvem, leve e bela/  vivendo de nunca chegar a ser/ À cigarra, queimando-se em música/ Ao camelo, que mastiga sua longa solidão/ Ao pássaro que procura o fim do mundo/ Ao boi que vai com inocência para a morte/  Sede assim qualquer coisa; serena, isenta, fiel/ Não como resto dos homens”.

Na coletânea de crônicas infanto-juvenis (“Janela Mágica”) em que se encontra a história do velho cãozinho, há outros textos igualmente belos, como “Uma gatinha branca” e “Floresta incendiada”, nos quais  a autora transmite aos leitores  um pouco do grande amor que sentia pelos animais e pela natureza. Sua arquitetura poética, aliás, caracteriza-se por uma refinada sensibilidade sobre o mundo que a cerca, advinda de uma voz serena e voltada às coisas simples da vida.

Cecília Meireles, poetisa do sensível e do imaginário, deveria tornar-se leitura recomendada aos estudantes. Porque sua obra é capaz de fazer as pessoas melhores.   Vale a pena conferir a entrevista em que ela, pedagoga dos melhores sentimentos humanos, concedeu à revista “O Cruzeiro”, poucos anos antes de sua morte:

Nome: CECÍLIA MEIRELES.

Nasceu no Rio de Janeiro (então Distrito Federal),  tem três filhas e dois netos.

Altura: 1,64 – Pesa 59 quilos e calça sapatos número 37.

É quase vegetariana. Não fuma, não bebe, não joga. Dorme e acorda cedo.

Não pratica nenhum esporte, mas gosta muito de caminhar e  acha que seria capaz de dar volta ao mundo a pé.

Não gosta de futebol e raramente vai ao cinema. Gosta de bom teatro.

Responde pontualmente todas as cartas que recebe, mas atrasa-se, às vezes, em agradecer livros, porque só agradece depois de os ler.

Adora música, especialmente canções medievais, espanholas e orientais.

Poetas preferidos: todos os bons poetas. Prefere os pintores flamengos.

Leu Eça de Queiroz antes dos 13 anos. Escreveu seu primeiro verso aos 9 anos.

Estudou canto, violão, violino e, às vezes, desenha.

Se pudesse recomeçar a vida gostaria de ser a mesa coisa, porém melhor.

Seu primeiro livro publicado foi Espectros, tinha 16 anos.

Seu principal defeito: uma certa ausência do mundo.

Seu tormento:  desejar fazer o bem a pessoas que precisam de auxílio e não o aceitam.

Gostaria de tornar a visitar o Oriente e chegar até a China.

Pensa que poderia, pelo menos, ficar muito tempo no Mediterrâneo.

Coleciona objetos de arte popular. Já colecionou xícaras e colheres de café.

Agora acha o café tão ruim que não vale a pena colecionar os acessórios.

Teve grande emoção ao chegar aos Açores, terra de seus antepassados.

Outra grande emoção: quando viu sua Elegia a Ghandi traduzida em idiomas da Índia.

É o poeta brasileiro mais conhecido em Portugal.

Até agora não conseguiu gostar de Paris, embora admire a França.

Admira profundamente São Francisco de Assis, Ghandi e Vinoba Bhave.

Coisas que a horrorizam: tocar em papel carbono, ver comer ostras, aspirar fumaça de ônibus.

Coisas que ama: crianças, objetos antigos, flores, música de cravo, praia deserta, livros, livros e livros, noite com estrelas e nuvens ao mesmo tempo.

Acha que não tem medo da morte. Gostaria de morrer em paz.

Também na prosa, Cecília Meireles contou um pouco da miséria que recai sobre os animais. Na crônica “Um cão, apenas”, ela descreve o encontro com um cãozinho abandonado, que dormia à sombra de uma porta: “Envergonha-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já lhe faltavam tantas coisas, que a menos dormisse: também os animais devem esquecer, quando dormem”. A narradora, nesse texto, lamenta nada ter feito em favor desse animal, tão sujo e doente, que lhe fitara com os olhos em súplica: “Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Ate o fim da vida sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens”.

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