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REPERCUSSÃO INTERNACIONAL

População de gatos abandonados cresce em ilha no Rio de Janeiro

21 de junho de 2021
The Washington Post | Traduzido por Julia Faustino
8 min. de leitura
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Foto: The Washington Post

Muitos dos rumores sobre a ‘Ilha dos Gatos’ do Brasil podem não ser verdade, mas os animais estão se mostrando um problema para o ecossistema da ilha, e as autoridades não têm certeza do que fazer, escreve Terrence McCoy.

Eduardo Mayhe Ferreira ouve histórias há anos, de como havia uma ilha na costa sudeste do Brasil que parecia deserta, mas não estava. Escondidos na densa cobertura de árvores estavam centenas de animais abandonados.

Oficialmente chamada de Ilha Furtada, era conhecida por quase todos como Ilha dos Gatos.

Dizia-se que era perigoso visitar. Os gatos cresceram até o tamanho de cachorros e se tornaram selvagens, disseram as pessoas. Eles atacariam estranhos. Um repórter brasileiro, escrevendo sobre a ilha “misteriosa”, afirmou que 750 gatos “selvagens” vagavam por sua selva; outros disseram mais. O número parecia aumentar a cada dia.

Mayhe Ferreira, um veterinário municipal na vizinha Mangaratiba, pegou um barco a motor pelas águas translúcidas para ver por si mesmo. Até então, ele nunca havia pisado na ilha, mas sabia o suficiente para entender que havia um problema. Porque pelo menos um boato era verdadeiro: no último ano, quando a pandemia de coronavírus devastou o Brasil, o número de gatos na ilha cresceu substancialmente. Duas colônias distintas se formaram. Números cada dia maiores, com isso veio o perigo de danos maiores ao ecossistema da ilha , mas sem qualquer acordo sobre o que fazer a respeito.

A ilha estava entrando em foco, uma calota esmeralda sobre águas azuis.

Ao longo desta costa ensolarada, um fenômeno global está acontecendo. Esses são os animais de estimação deixados para trás pela pandemia. A crise do coronavírus deixou milhões de donos de animais mortos ou empobrecidos, incapazes de cuidar de seus animais. Em países ricos como os Estados Unidos, abrigos e redes pessoais absorveram grande parte do aumento. Mas em todo o mundo em desenvolvimento, onde os sistemas de abrigo são menos robustos e os animais de rua são comuns, um número crescente de animais foram simplesmente abandonados.

“Muitos dos gatos, vendo que os funcionários não trouxeram comida, cansaram-se dos visitantes. Alguns voltaram para os pequenos abrigos. Outros desapareceram nas árvores”

Foto: The Washington Post

O desafio é particularmente agudo no Brasil, onde o coronavírus matou mais de 500.000 pessoas, desencadeou uma crise habitacional e causou fome generalizada. Os gerentes de abrigos de animais domésticos no país dizem que estão sobrecarregados. Isso inclui o abrigo mais próximo da Ilha dos Gatos. Alguns dias, conta a diretora do abrigo Andrea Rizzi Cafasso, as pessoas chegam com um carro cheio de gatos. Tantos que ela não consegue aceitar todos.

Quando ela recusa, diz ela, ela obtém a resposta: “Se você não os levar, eles vão para a Ilha dos Gatos”.

De longe, Mayhe não podia ver os gatos ainda. Ele sabia que pessoas de toda a região enviavam gatos indesejados para lá, deixando-os eles próprios ou pagando a um barqueiro alguns dólares para fazer a viagem. Tornou-se parte da cultura local, uma última parada para gatos indesejados, que aprenderam a sobreviver da caça e da comida deixada pelos visitantes ou morreram.

O que fazer com eles dividiu a comunidade. A cidade queria que as pessoas parassem de alimentar os gatos, dizendo que isso incentiva mais abandono. Mas os amantes dos animais chamam isso de bárbaro. Os gatos morreriam sem esses cuidados. Não há nada na ilha, dizem eles. Sem comida. Sem água. Apenas gatos.

O barco atracou e lá vieram eles, galopando para fora das árvores para se agrupar na beira da água, com o pelo todo sarnento e olhos estreitos.

Ninguém pode dizer ao certo como os gatos chegaram pela primeira vez. Autoridades de Mangaratiba dizem que uma família tentou ganhar a vida aqui décadas atrás, mas logo desistiu, deixando para trás um par de gatos que começaram a se multiplicar. Os barqueiros dizem que um restaurante fechou e os proprietários abandonaram seus gatos na saída. Um veterinário diz que um velho confessou a ela que foi a primeira pessoa a trazer gatos para cá – mas quando foi procurado para comentar, ele negou veementemente.

As perguntas não respondidas alimentaram a tradição local. Poucos queriam conhecer a Ilha Furtada, uma pequena ilha entre muitas, despojada de praias e coberta de aranhas. Mas a Ilha dos Gatos era uma história totalmente diferente: tornou-se uma parada para turistas que passeavam pelas ilhas. Alguns iam de motoneta até a ilha só para dar uma olhada. Muitos passaram a acreditar que os gatos da ilha tinham uma vida melhor do que os gatos da cidade, que tinham de se arranhar e sobreviver nas ruas.

“Lá eles têm tudo de que precisam”, argumenta o barqueiro Miguel Campos, de 61 anos. “Há pássaros para caçar e eles têm outros alimentos. Existem sementes, insetos e cobras que eles podem comer. ”

Mas Amélia Oliveira, veterinária que viaja pelo Brasil cuidando de animais, diz que o mito está muito distante da realidade. Em 2012, uma amiga enviou seu vídeo da ilha. Não era o paraíso dos gatos. Mas sim Alcatraz dos gatos. Não havia nem água fresca ali.

Ela encontrou a ilha fervilhando de um número desconhecido de gatos. Alguns se aproximaram dela, ronronando. Outros eram totalmente selvagens. Eles nasceram na ilha, não sabiam nada sobre a humanidade e seriam impossíveis de se socializar. Ela trouxe de volta alguns dos agradáveis para adoção e começou a capturar e neutralizar outros. Na última década, diz ela, 380 dos gatos da ilha foram castrados por sua organização, Veterinarians on the Road.

“A população felina estava sendo controlada”, diz Oliveira.

Organizações e um casal de aposentados deixaram comida e água para os gatos. Outros montaram pequenos abrigos. Os pescadores lhes davam parte de sua pesca.

Mas quando a pandemia atingiu, o delicado equilíbrio foi desfeito. Os gatos aumentaram rapidamente em número. As pessoas, trancadas lá dentro, pararam de deixar comida e água. Relatos de canibalismo de gatos começaram a circular. O que começou como uma esquisitice local – até mesmo uma atração turística – tornou-se um constrangimento público e um problema ecológico.

“Mas as autoridades, olhando para a miséria das moradias para gatos, disseram que a situação era mais complicada do que o absolutismo da mídia social”

Alguns dos gatos se aproximaram dos funcionários municipais visitantes, esfregando-se em suas pernas. Outros caminhavam pela costa, para frente e para trás, para frente e para trás. Mais observaram os forasteiros, com cautela, à distância.

A colônia parecia uma favela felina. Casas do tamanho de gatos deixadas por voluntários espalhadas, ao lado de jarros para coletar água da chuva e comedouros de comida para gatos que precisam ser reabastecidos. Aranhas de cores vivas, cada uma do tamanho da palma da mão de um bebê, se agarravam a teias amarradas entre os acessórios. O litoral estava coberto de lixo.

“Levar um gato para lá é crueldade contra os animais”, diz Mayhe.

Mas com os abrigos lotados e muitos gatos incapazes de serem socializados, trazê-los de volta ao continente seria igualmente complicado. Os funcionários de Mangaratiba não tinham certeza se conseguiriam realizar o plano que haviam concebido.

Eles queriam enviar expedições para explorar a ilha e realizar um censo felino. Em seguida, colocar um monte de câmeras de segurança para impedir o abandono e processar os infratores. Em seguida, comece a castrar. E, finalmente, deixe a natureza seguir seu curso. Os gatos dóceis seriam adotados. Os outros viveriam suas vidas na ilha, até que não houvesse mais nenhum.

Foto: The Washington Post

O plano é controverso. O secretário de saúde pública da cidade se opôs à alimentação dos gatos da ilha. Isso encorajaria outros a abandonar seus gatos lá.

“As pessoas estão me atacando como se eu fosse louca no Facebook”, disse Sandra Castelo Branco ao The Washington Post . “Mas eu quero mudar o paradigma.”

Joice Puchalski, coordenadora de um grupo de voluntários que alimenta os gatos, ficou furiosa. Os animais não pediram para viver em uma ilha deserta. Ela diz que urubus foram vistos circulando a ilha. Como as pessoas poderiam abandoná-los novamente? Ela postou uma captura de tela dos comentários de Castelo Branco no Facebook e soltou: “Lamentável.”

“Que absurdo”, concordou uma das dezenas de respostas furiosas.

“A maior doença que a Sra. Secretária tem é a pobreza de espírito”, disse outro.

Mas as autoridades, observando a miséria das moradias para gatos, disseram que a situação era mais complicada do que o absolutismo da mídia social. “É terrível”, diz Fernanda Porto, subsecretária de meio ambiente da cidade. “Vamos deixar os animais morrerem de fome ou vamos continuar dando comida, o que só vai incentivar mais abandono?”

Muitos dos gatos, vendo que os funcionários não trouxeram comida, cansaram-se dos visitantes. Alguns voltaram para os pequenos abrigos. Outros desapareceram nas árvores. Mayhe olhou para a floresta. Não havia como dizer quantos estavam lá. O reconhecimento da cidade tinha feito pouco, mas confirmava que havia muito trabalho pela frente.

Ele e os outros voltaram para o barco. Eles ligaram o motor e partiram para o mar. Os gatos se afastaram, movendo-se como sombras em uma pequena ilha entre muitas.

Fonte: The Independent / The Washington Post

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